A reforma tributária aprovada pela Câmara dos Deputados, na madrugada de sexta-feira (7/7), deixou várias incertezas, como a alíquota dos novos impostos sobre valor agregado (IVA), que só será definida ao longo do processo de transição. Na avaliação do economista Alberto Ramos, diretor do Grupo de Pesquisa Macroeconômica para América Latina do banco norte-americano Goldman Sachs, dificilmente haverá redução da carga de impostos sobre os contribuintes ou impacto zero na arrecadação do governo.
"A alíquota será relativamente elevada, vai ser salgada", afirma o economista, em entrevista ao Correio. Segundo ele, as mudanças feitas pelos deputados deixaram a reforma "muito complexa", em vez de criar um imposto mais simples.
O economista também não vê o novo arcabouço fiscal com bons olhos. "Ficou a certeza de que haverá um aumento enorme da carga tributária e que a trajetória de resultados primários, que foi anunciada junto com o novo arcabouço, não estabiliza a dívida. Não vai ser fácil", afirma.
De acordo com o analista, faltam medidas para melhorar a qualidade do gasto público, pois, historicamente, o governo gasta mal. "Eu me recuso a acreditar que um país que gasta mais de R$ 2 trilhões por ano não tem onde cortar e que todo gasto é muito bem alocado, gasta de uma maneira super eficiente", pontua.
Para o economista, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ainda vai agradecer ao presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, pela condução da política monetária, porque, se o BC quisesse dar um choque para cumprir o centro da meta de inflação (de 3,25% neste ano) e não o teto (de 4,75%), a taxa básica da economia (Selic) estaria praticamente no dobro do patamar atual, de 13,75% ao ano.
Sobre as críticas de Lula ao atual patamar da taxa Selic, Ramos é categórico: "O governo é o maior responsável pelo juro alto. Desculpe a franqueza. O governo é o maior tomador de recursos, é quem mais se endivida na economia", afirma. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Qual é sua avaliação da reforma tributária que precisará ser votada pelo Senado? Já é possível mensurar o impacto na economia?
Ainda é incerto. O potencial existe, mas o texto está ficando muito complexo. Tem alíquota preferencial, alíquota zero, exceções… As questões difíceis ficaram para serem definidas depois, por meio de leis complementares. Será preciso definir o que é serviço, alíquota zero, por exemplo. A lei ainda vai determinar como é que vai ser o acesso ao fundo que compensa as perdas dos estados. Falta muita coisa importante para termos uma avaliação do impacto. Há opiniões de especialistas muito díspares. Para mim, a reforma é muito ruim, porque, como está ficando complexa, pode diminuir o ganho de se reduzir o litígio judicial. Tudo que é complexo leva a diferentes interpretações. E como a reforma só vai entrar em vigor em 2026, com uma alíquota experimental, no período de transição, ainda falta muito tempo para uma definição.
Ou seja, não vai mudar o preço do pãozinho, da cesta básica, a partir de amanhã?
Infelizmente, não. Mas a alíquota será relativamente elevada, vai ser salgada. Pode ser além dos 25%-27% que inicialmente queriam. A lei ainda vai para o Senado, onde deve sofrer alterações, e, depois, voltará para a Câmara. Estamos longe de saber qual vai ser a arquitetura geral da reforma.
O senhor acredita no discurso do governo de que o impacto será zero na carga tributária?
Vamos ter que esperar para ver. Mas haverá um período de transição até 2033. O governo vai sempre vender que o impacto é neutro, do ponto de vista de receita. Vamos ver.
A economia brasileira surpreendeu no primeiro trimestre com o crescimento de 1,9% do PIB. Podemos esperar novas surpresas no segundo semestre?
É possível. O crescimento do primeiro trimestre foi muito alavancado na produção agrícola, que tem muito a ver com o clima. A economia está crescendo. O mercado de trabalho está bastante robusto, com o nível de desemprego dentro do parâmetro neutro, que não acelera a inflação. Talvez o mercado tenha subestimado a contribuição residual da reabertura da economia, particularmente o impacto do setor de serviços. As pessoas mudaram o padrão de consumo. Foram dois anos muito ruins, durante a pandemia. Hoje, as pessoas pensam que não se vive duas vezes e estão mais dispostas a gastar. O segundo fator é que o crescimento global também está mais resiliente. E o terceiro fator são os estímulos fiscais e parafiscais. Houve aumento de gastos durante a campanha eleitoral, e eles foram ampliados depois da transição, com o novo Bolsa Família e outros tipos de gastos. Outra surpresa tem a ver com a inflação, que começou a ceder, particularmente, no preço dos alimentos e da energia, que têm peso elevado no orçamento de famílias de renda mais baixa. Isso ajuda a sustentar o consumo.
Há expectativa de novas pressões de preços no segundo semestre. Isso pode coincidir com o período em que o Banco Central sinaliza a queda de juros. Até que ponto esse recuo da inflação será suficiente para o BC afrouxar a política monetária, enquanto o Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA) já deu sinal de que vai aumentar os juros novamente? O Brasil vai estar na contramão?
A queda da inflação reflete bastante o efeito-base, porque a carestia acelerou muito no primeiro semestre do ano passado. E também reflete o impacto restritivo da política monetária. Apesar de toda crítica, acho que o Banco Central acabou por fazer um trabalho notável, sem derrubar a economia, tanto que as expectativas estão se ancorando, o câmbio está se apreciando e a Bolsa, voltando a subir. Agora, o Banco Central pode, sim, ir na contramão do Fed que, provavelmente, ainda vai subir os juros uma ou duas vezes. Tem espaço para reduzir o juro, independentemente do que o Fed e os outros países desenvolvidos estão fazendo. Mas o que eles fizerem limita um pouco a calibragem doméstica da política monetária.
O Comitê de Política Monetária (Copom) sinalizou na última ata que pode começar o corte de juros em agosto. Qual é a previsão do banco para a Selic para o fim do ano?
Sempre achei que agosto era um ponto bom para começar um ciclo, por várias razões. A primeira é que o efeito-base era muito alto e que a inflação anual ia, provavelmente, ficar abaixo de 4%, em junho e em julho. Por outro lado, a reunião de agosto já começa dentro do horizonte relevante de uma parte de 2025. Como a política monetária é muito restritiva, é óbvio que o quadro da inflação, no início 2025, tem que estar melhor e isso permite ao Banco Central começar a cortar (os juros). Como o Copom fala na ata em ter parcimônia, acho que vai ser um corte de 0,25 ponto percentual, e, depois, o BC acelera para 0,50 ponto e vai calibrando à medida que evoluem as expectativas de inflação. Para o fim deste ano, prevemos Selic a 12% ao ano.
Essa previsão de 12% é consenso do mercado após o Conselho Monetário Nacional (CMN) manter a meta em 3%, nos próximos três anos, e adotar uma nova meta contínua. Isso ajuda a dar mais espaço para o Banco Central reduzir a Selic?
Ajuda muito. Foi um passo muito acertado, porque permite aos agentes reduzirem as expectativas de inflação para 2024, 2025 e 2026. A pesquisa semanal do Focus (do Banco Central) já mostrou isso na segunda-feira. Além disso, o CMN criou uma meta permanente e não mexeu na banda de variação. Isso vai ajudar certamente ancorar as expectativas depois de tanto ruído. Agora, a meta do BC é igual à da maioria dos países.
E, depois de tanta crítica do governo em relação ao Banco Central, quer dizer que, em algum momento, o Lula vai ter que agradecer ao Campos Neto?
Não sou psicólogo do Lula. Mas acho que o Banco Central fez um bom trabalho. Não dá para minimizar o custo da inflação. Se fosse possível desinflacionar sem dor, todo mundo faria. Com certeza, o BC não gosta de juros altos e, muito menos, das críticas que vêm com eles. O mandato do Banco Central é bem claro: entregar a inflação na meta. E nunca é demais repetir que inflação baixa e estável é a melhor contribuição que o BC pode dar para um ciclo de crescimento robusto, sustentável e socialmente inclusivo. Todo mundo está usando juro alto para baixar a inflação. É o instrumento mais eficiente. Num outro contexto, o BC está tendo consciência social, porque, tecnicamente, seria possível dar um choque nos juros, acima de 25%, 26% para entregar a inflação na meta, como Campos Neto já disse. O BC está ciente de que vai fazer um processo de convergência um pouquinho mais alongado para não derrubar a economia, para não prejudicar o mercado de trabalho. Lula deveria ligar para o presidente do Banco Central e dar os parabéns, porque, o BC conseguiu desinflacionar com a economia crescendo e o mercado de trabalho robusto. Não é fácil fazer isso. Não é assim que geralmente acontece.
O Goldman Sachs tem uma perspectiva otimista para o câmbio, com o dólar chegando a R$ 4,30 neste ano. Qual é a conjuntura para que isso ocorra?
Nossa perspectiva é positiva, com fatores domésticos e fatores globais. O real não é a única moeda de mercados emergentes que está se apreciando. Na América Latina, é a terceira moeda que mais se valorizou, atrás do peso mexicano e o peso colombiano. E esse cenário é resultado de uma política monetária conservadora. A taxa de juro está alta, tanto que isso gera um atrativo em deter a moeda, Depois, há fatores de risco externos. Reduziu-se a probabilidade de uma recessão nos Estados Unidos. Isso está levando também a um apetite renovado por ativos de risco de mercados emergentes, como o Brasil. Há espaço para mais alguma valorização do real.
Como o senhor avalia a atuação do novo governo nos primeiros seis meses do ano?
No começo do governo, houve muito ruído. Basta ver a evolução dos preços de ativos, da curva de juros, do Índice Bovespa e do real. Houve apreensão com a aprovação da PEC da Transição, com aumento de gastos e com algumas declarações um pouco mais agressivas do governo em relação ao mercado. Isso gerou temores na política fiscal, na política macroeconômica, no manejo das empresas públicas, de interferência na formação de preços importantes na economia, como combustíveis e o preço do crédito direcionado do BNDES. A política microeconômica se deteriorou. Na parte macroeconômica, menos. Mas a política monetária se manteve mesmo com algum risco fiscal. Aí veio o novo arcabouço, mas é um arcabouço que não estabiliza a dívida.
Pode explicar a sua avaliação do novo arcabouço fiscal?
Hoje, o fundamental já está definido, mas ainda há coisas que dependem da negociação política, como o Fundo Constitucional do Distrito Federal. A nova regra fiscal reduziu um pouco a incerteza, mas ficaram algumas certezas amargas, como a de que vai ser necessário aumentar a carga tributária num nível bastante significativo. E isso tem implicações para o crescimento, para o investimento, para a inflação, todas negativas. Num país onde a carga tributária já é extraordinariamente alta, ficou a certeza de que a trajetória de resultado primário anunciada não estabiliza a dívida pública. Ainda vejo o fiscal como uma fonte de preocupação a médio e longo prazos. Mas sempre achei que, com arcabouço ou sem arcabouço, não ocorreria um desastre fiscal, porque o presidente Lula e o ministro Fernando Haddad (da Fazenda) entendem que não dá para validar uma grande expansão fiscal, aumentar o gasto sem funding, porque as condições financeiras ficariam mais restritivas. E quanto mais o governo gastar, menos a economia vai crescer. Já vimos esse filme lá atrás.
Até agora, eles estão contando muito mais com o aumento de receita em vez de anunciar cortes de gastos.
Não há medidas para racionalizar e otimizar os gastos. Se falava muito de orçamento base zero, que o Ministério do Planejamento iria olhar para todas as partidas mas, até agora, não viu. Melhorar a qualidade do gasto é uma agenda importantíssima. Eu me recuso a acreditar que um país que gasta mais de R$ 2 trilhões por ano não tem onde cortar, e que todo gasto é muito bem alocado, de maneira supereficiente. Agora, a estratégia passa só por "eu quero gastar, eu quero gastar e quero ver onde é que eu vou arranjar uma grana extra".
O discurso da esquerda vai justamente na conta de juros, que é elevada. Mas essa conta cresce por causa do problema fiscal?
Basta o governo deixar de pedir emprestado que a conta de juros vai para zero. Se o governo acha que o juro está alto, então precisa parar de se endividar. Se acha que o juro é alto, que peça menos emprestado ao mercado todo ano. O governo é o maior responsável pelo juro alto. Desculpe a franqueza. O governo é o maior tomador de recursos. É quem mais se endivida na economia. É só gerar superavit primário que o juro cai rapidamente.