ENTREVISTA

'Independência dos bancos centrais está sob pressão política', diz professor

Manuel Romera Robles, diretor do setor financeiro do IE Business School, aponta que a dificuldade das autoridades monetárias em controlar a inflação aumenta o descontentamento da população, em especial, a mais pobre

Lisboa — O Banco Central Europeu (BCE) chegou aos 25 anos na quinta-feira (1°/6) com desafios enormes pela frente. Além de lidar com uma inflação resistente, de 7% anuais, encara mudanças estruturais na economia da zona do euro, como a nova estrutura geopolítica, o envelhecimento da população, a digitalização do dinheiro e as questões ambientais. Há correntes de economistas e políticos que defendem alterações na meta de inflação, de 2% ao ano, sob o argumento de que esse objetivo limita ações em prol de um crescimento maior do Produto Interno Bruto (PIB) e da geração de empregos, sobretudo, para os mais jovens, as principais vítimas das sucessivas crises econômicas enfrentadas pelo mundo nesse um quarto de século.

Pelas contas do professor Manuel Romera Robles, diretor do setor financeiro do IE Business School, em Madri, dos 300 meses de existência do BCE, em apenas 51 (17%) a inflação ficou na meta. Isso, no entender dele, comprova que a instituição está longe de cumprir sua missão, apesar dos avanços conquistados pelos quatro presidentes que a comandaram nesses 25 anos. A atual comandante do banco, Christine Lagarde, acredita que ainda não está na hora de se tratar desse tema. O certo, porém, é que as incertezas aumentaram e as expectativas dos cidadãos da zona do euro ante a inflação estão pior momento da série histórica. “Um problema que o BCE terá de administrar”, afirma o professor. “E são os consumidores mais velhos os mais pessimistas.” Ele diz mais: “A independência e os mandatos dos bancos centrais do mundo estão sob pressão política”.

O especialista ressalta que, em meio à insegurança com a economia, os europeus acompanham com grande atenção o projeto que resultará na criação do euro digital. O desenho ainda precisa passar pelo crivo da Comissão Europeia para que, então, todos os países do bloco possam fechar as regras únicas que mudarão de patamar da relação com o dinheiro na região. Ele acredita que todo o processo deve estar concluído até o fim desde ano. “Cabe aos legisladores decidirem se o euro digital será um meio de pagamento inclusivo e verdadeiramente europeu, amplamente utilizável e acessível em toda a zona do euro, gratuito na utilização básica e oferecendo os mais elevados níveis de privacidade”, diz, em entrevista ao Correio.

A seguir, os principais trechos:

Como o senhor avalia o trabalho feito pelo Banco Central Europeu? A instituição tem cumprido o seu papel?

Duas décadas e meia depois de ter começado a funcionar como banco central do bloco monetário da União Europeia, os quatro presidentes que estiveram à frente da instituição (Wim Duisenberg, Jean-Claude Trichet, Mario Draghi e Christine Lagarde) enfrentaram grandes problemas para manter a inflação nos níveis da meta. Embora tenha sido alcançada em momentos específicos, a inflação manteve-se longe do objetivo perseguido pelo BCE na maior parte do tempo. A estabilidade dos preços foi estabelecida no início do século na ordem dos 2% ao ano. Se levarmos em conta esse objetivo, o Banco Central Europeu só cumpriu o seu mandato em 17% dos meses desde o seu nascimento: ou seja, em somente 51 de 300 meses dessa jornada, a taxa de inflação oscilou entre 1,9% e 2,1%.

Há uma certa leniência do BCE em relação à inflação atual? Outros bancos centrais foram mais duros no aperto da política monetária.

O ciclo mais rápido e vigoroso de subidas das taxas de juro das últimas décadas não conseguiu, até agora, aplacar suficientemente a inflação. O BCE, tal como outros bancos centrais, teve de sacar todas as suas armas para controlar o custo de vida. Apesar de o banco ter aumentado em 3,75 pontos percentuais, a inflação subjacente permanece muito elevada, enquanto a inflação geral parece ter ficado enraizada. Muitos meses se passaram desde o início do aperto monetário, a economia real parece insistir em ir na direção oposta, complicando a vida do BCE, embora seja verdade que os mercados financeiros absorveram, em grande parte, a transmissão dos juros mais altos. Penso que a política monetária demora entre seis e 12 meses para ter impacto na economia real e, por conseguinte, para atacar o núcleo da inflação (que desconta os preços dos alimentos in-natura e da energia). Mas ainda estamos dentro dos prazos para que a política monetária comece a fazer o seu trabalho.

Quais os maiores desafios hoje do Banco Central Europeu?

A inflação, atualmente, é uma das várias preocupações que os bancos centrais enfrentam. As rápidas mudanças no contexto econômico deixam menos espaço para manejos na política monetária, pois as forças estruturais, que vão da fragmentação geopolítica às alterações climáticas, ao envelhecimento da população e à emergência da moeda digital, complicaram grandemente os desafios subjacentes. Os mandatos dos bancos centrais, e mesmo a sua independência, estão sujeitos a uma pressão política crescente. Essas novas forças, entre outras, levantam questões sobre a forma como a política monetária terá de mudar no futuro.

O BCE está preparado para lidar com a nova economia, em especial com a digitalização da moeda?

Ao longo dos últimos 20 anos, as notas de euro permitiram a todos os cidadãos da área do euro reconhecer e utilizar facilmente o dinheiro como é hoje, independentemente do seu país de residência ou do local onde efetuam o pagamento. E o euro digital deve permitir exatamente a mesma coisa. Os cidadãos devem poder pagar e receber recursos em euros digitais em qualquer parte da zona do euro, independentemente do intermediário que utilizem ou do país em que estejam localizados. Para isso, precisamos de um conjunto comum de regras, que devem limitar-se ao estritamente necessário para estabelecer e proporcionar aos cidadãos uma experiência de pagamento harmonizada e adequada, permitindo e incentivando simultaneamente o desenvolvimento de novos serviços e soluções por intermediários supervisionados.

É possível realmente acreditar no euro digital? Isso já é uma realidade?

A concepção do euro digital e o seu quadro regulamentar são essenciais para garantir a manutenção de suas características fundamentais enquanto bem público. Cabe aos legisladores decidirem se o euro digital será um meio de pagamento inclusivo e verdadeiramente europeu, amplamente utilizável e acessível em toda a zona do euro, gratuito na utilização básica e oferecendo os mais elevados níveis de privacidade. O sucesso de um euro digital estará nas mãos deles. O BCE está pronto para continuar a debater todas essas questões durante o processo legislativo. A próxima fase do projeto, que deverá ter início no final deste ano, incorporará ajustes à concepção do euro digital considerados necessários na sequência de deliberações legislativas. Durante esta fase, desenvolverão e testarão as possíveis soluções técnicas e mecanismos operacionais necessários para produzir um euro digital. Esses dois processos, legislativo e de concepção, devem decorrer em paralelo, para que estejamos em posição de começar a emitir rapidamente um euro digital, se e quando for considerado adequado. A eventual decisão do Conselho do BCE de emitir um euro digital será tomada após a adoção do ato legislativo. Devem tomar todas as medidas necessárias para tornar o euro digital um verdadeiro bem público. No entanto, todas as instituições europeias têm de fazer o seu trabalho se quisermos alcançar o nosso objetivo comum: o êxito do euro digital. É por isso que a proposta legislativa da Comissão Europeia é aguardada com expectativa. Será um passo decisivo para o euro digital e colocará a Europa na vanguarda do trabalho sobre as moedas digitais dos bancos centrais no G7.

Como o BCE pode conciliar crescimento econômico, inflação baixa e emprego em alta?

É muito difícil estimular e apertar a economia ao mesmo tempo, e as expectativas de inflação dos cidadãos europeus aumentaram significativamente, segundo levantamento do Banco Central Europeu divulgado após a reunião em que elevou as taxas de juros para 3,75% ao ano. A incerteza sobre a inflação em 12 meses atingiu o nível mais elevado desde o início da pesquisa, em abril de 2020. O BCE observou que as perceções e as expectativas de inflação estão estreitamente alinhadas entre os grupos de rendimento, mas os participantes mais jovens (entre 18 e 34 anos) continuaram a reportar percepções e expectativas de inflação mais baixas do que os mais velhos (55 a 70 anos). Os consumidores continuam a esperar que a taxa de desemprego futura seja superior à atual taxa (11,3%), sendo os mais pessimistas os cidadãos pertencentes ao grupo dos que têm rendimentos mais baixo, os mais pobres. Por seu lado, os cidadãos esperam que o preço das casas aumente 2,7% nos próximos 12 meses. Essa alta reflete, sobretudo, as expetativas daqueles com rendimentos abaixo da média e dos mais jovens. Já em relação às taxas de juros do crédito à habitação, a expectativa é de que atinjam 5,1% a ano, 1,8 ponto percentual acima das registradas no início de 2022. Não é um cenário benigno.

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