Vila Nova de Gaia, Portugal — Voz cada vez mais influente nas discussões econômicas do país, o professor André Roncaglia, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirma que o Banco Central tem agido de forma política e, por isso, atrasado o processo de redução da taxa básica de juros (Selic), de 13,75% ao ano. Na avaliação dele, o presidente da instituição, Roberto Campos Neto, que votou no candidato derrotado nas últimas eleições, tem manejado os indicadores econômicos de acordo com a conveniência dele para justificar o excesso de conservadorismo do Comitê de Política Monetária (Copom). “Na minha opinião, os juros poderiam estar, hoje, entre 10,5% e 11% anuais”, diz.
Roncaglia, que prevê crescimento econômico entre 2% e 2,5% neste ano, ressalta que ninguém espera um cavalo de pau na política monetária, de forma a minar a confiança no Banco Central. Para ele, no entanto, a autoridade monetária deveria se sensibilizar ante os mais frequentes indicadores, que apontam acelerado processo de desinflação no país. O Índice Geral de Preços — Disponibilidade Interna (IGP-DI) de maio teve queda de 2,33%, a maior para o mês desde 1951, na era Vargas. O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), usado como parâmetro para as metas de inflação, subiu apenas 0,23% no mês passado, abaixo de todas as estimativas. “Os preços estão com deflação no atacado e isso está chegando aos consumidores”, ressalta.
Para o professor, se os juros estivessem em um patamar mais civilizado, o resultado do Produto Interno Bruto (PIB) do primeiro trimestre do ano teria sido muito superior ao avanço de 1,9% computado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ele acrescenta que os investimentos de empresas e o consumo das famílias estão travados pela falta de um horizonte menos hostil e pelo elevado nível de endividamento. “A partir do momento em que os juros caírem, veremos produção e consumo mais fortes. Na minha visão, a principal restrição à atividade econômica hoje é, essencialmente, a taxa de juros, que está num patamar profundamente desalinhado com o que deveria estar internamente e, certamente, com o resto do mundo”, reforça.
Na avaliação de Roncaglia, o mercado financeiro começa a admitir que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não fará nenhuma mudança radical na economia. Por isso, o otimismo que levou o dólar para abaixo de R$ 4,90, a Bolsa de Valores para os 117 mil pontos e os juros futuros aos menores níveis em meses. “Acho que o mercado está começando a compreender que há benefícios em se olhar também para a parte de baixo da pirâmide social, para a distribuição de renda que garante consumo, a circulação de dinheiro. Não que se sensibilize com isso. Está tolerando e, ao tolerar, diminui a pressão, o constrangimento que se faz sobre o governo”, diz.
Outro ponto importante, segundo ele, foi a forma como o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, lidou com a questão do marco fiscal, que agradou bastante os agentes financeiros, para desespero da base do governo, que gostaria que a gestão de Lula fosse mais para o confronto com a banca e a Faria Lima. “Para mim, o arrocho decorrente do novo arcabouço fiscal é excessivo, mas foi o aprovado”, afirma ele, que vê um potencial enorme de crescimento para o Brasil se a reforma tributária sair do papel. A seguir, os principais trechos da entrevista que o economista concedeu ao Correio durante participação no 7ª Congresso Luso-Brasileiro de Auditores Fiscais.
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O senhor tem se posicionado de forma veemente defendendo a queda dos juros pelo Banco Central. Nos últimos dias, saíram mais dois dados importantes sobre inflação, confirmando o alívio nos preços: o IGP-DI teve queda de 2,33% em maio, a maior para o mês desde 1951, e o IPCA subiu apenas 0,23%, bem abaixo das expectativas. O que está acontecendo no Brasil?
Temos um processo de desinflação que está muito acelerado por uma conjunção de fatores que, no contexto da pandemia e, depois, da guerra na Ucrânia, estavam empurrando a inflação para cima. Conforme as cadeias produtivas foram se reorganizando, os problemas de transporte marítimo internacional se regularizaram, questões portuárias, tudo o que a gente chama de gargalo produtivo foi sendo resolvido. Essas pressões foram baixando. No contexto da própria guerra da Ucrânia, os preços da energia também começaram a ceder, o barril do petróleo começou a cair. Todos esses dados puxam o índice geral de preços, que é muito dependente do preço no atacado, que chamamos de preço ao produtor, para baixo. Tudo está caindo. O IGP-DI teve uma variação negativa. Não é só que a inflação desacelerou, está negativa em 5,40% em 12 meses, evidenciando que as pressões de preços estão sendo reduzidas. Obviamente, não sabemos qual é a sensibilidade do Banco Central a esses indicadores. Por enquanto, a sensibilidade é zero. Mas a evidência é muito clara no sentido de que a economia está passando por um processo acelerado de desinflação.
E no caso do IPCA, usado como referência para as metas de inflação?
A despressurização dos preços ao produtor está chegando aos consumidores, como era esperado, como ocorre normalmente. O que vemos é uma desaceleração importante. Na minha visão, esses dados justificam sensibilizar o Banco Central para o início do afrouxamento monetário. O Banco Central tem de fazer isso antes de o Boletim Focus mostrar que a Faria Lima se convenceu disso. O BC tem a capacidade de tomar iniciativas e começar o corte de juros para deixar a economia funcionar de maneira mais oxigenada, em consonância do que que vem ocorrendo no resto do mundo. Há indicadores suficientes mostrando uma desinflação avançada, o que, obviamente, indica que o BC pode agir, nada muito abrupto, com intensidade não muito rápida.
O Banco Central está errando na mão?
Certamente, porque temos vários sinais de desaquecimento da atividade em termos setoriais e na economia como um todo, muito embora tenha havido um repique do PIB no primeiro trimestre do ano por conta do auxílio Brasil, que foi pago no último ano da gestão Bolsonaro, e de outros pacotes fiscais que foram lançados com a PEC da Transição. Isso está dando alguma vida para a economia, mas quase um ano de taxa de juros muito elevada vai paralisando a atividade produtiva. O emprego tende a começar a cair de maneira acelerada e, quando isso acontecer, vai ser muito difícil reverter. Demora muito tempo. Então, a combinação de juro muito alto com uma economia que vai se desacelerando pressiona fundamentalmente as finanças das empresas, que já estão paralisando atividades, pedindo recuperação judicial. Temos registrado recordes de pedidos de recuperação judicial, de falências. Isso mostra que o Banco Central está errando na mão por um preciosismo que é teórico, exclusivamente teórico, não encontra respaldo na realidade, como vários indicadores vêm mostrando.
Os juros se tornaram uma questão política? Diante do fato, por exemplo, de o presidente Lula vir sistematicamente criticando o Banco Central, o BC se manteria irredutível para não dizer que está cedendo às pressões?
Eu acho muito difícil separar o político do que é o técnico, como o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, vem tentando fazendo. Não à toa, se chama política monetária. Existe um conteúdo político que é absolutamente indissociável desse processo. E o fato de ele ter tido, já como presidente de um Banco Central autônomo, uma atuação política muito clara, muito enviesada na direção do candidato que perdeu as eleições, salienta esse aspecto político. Mas existem mais coisas que revelam esse viés político da atuação dele.
O quê, por exemplo?
A primeira delas é a estratégia retórica do presidente do Banco Central, que vem usando os indicadores conforme a conveniência dele, para defender a intransigência restritiva que o Comitê de Política Monetária vem aplicando nos juros. O segundo ponto, e eu gosto de evidenciar essas contradições, é que, quando se critica o presidente Roberto Campos Neto pelo fato de o BC manter uma política monetária restritiva, dizem que ele é só mais um nome no Copom. Quando o presidente Lula indica, no caso, o Gabriel Galípolo para uma diretoria do Banco Central, que é uma em nove, o argumento é de que ele vai alterar a política monetária. Ora, se o Roberto Campos Neto é só uma pessoa, por que o Galípolo, que será só um diretor, iria alterar a política monetária? Então, vejo nessas contradições o viés político que está marcando o posicionamento do Banco Central.
Na sua avaliação, dado o contexto geral de desinflação, que patamar deveriam estar os juros hoje?
Acho que os juros, numa trajetória suave, sem dar cavalo de pau em transatlântico, numa medida gradual, poderiam estar pelo menos 3 pontos percentuais abaixo dos 13,75% anuais que temos hoje, ou seja, algo entre 10,5% e 11% ao ano, numa trajetória para que se chegue a taxas reais em torno de 3% a 4%. O meu receio é que, quando o Banco Central for iniciar o desaperto, que tenha de fazê-lo num ritmo muito acelerado. Acho isso tão ruim quanto manter a taxa de juros muito elevada.
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As apostas são de queda de 0,5 ponto na taxa Selic na reunião do Copom de agosto. Havia alguns economistas que falavam da possibilidade de queda ainda junho. Isso está afastado?
É muito difícil saber. O Roberto Campos Neto vem dando sinalizações de que está se sensibilizando aos dados que estão saindo da economia. Contudo, é difícil saber qual é a sensibilidade do Banco Central à realidade. Sabemos qual é a sensibilidade do Banco Central ao Boletim Focus (pesquisa realizada todas as semanas com agentes de mercado). Pelas sinalizações, acho que, nesta próxima reunião, o Copom pode indicar o início do afrouxamento monetário para agosto. Agora, creio que seja difícil uma baixa de 0,5 ponto de uma vez. Muito provavelmente, será de 0,25 ponto, porque, se a redução for maior, o BC assumirá a responsabilidade por não ter iniciado esse movimento antes. Acho praticamente impossível que os juros caiam em junho. Posso estar errado, mas a retórica e o discurso das atas do Copom vêm no sentido de muita prudência, de muito cuidado. Então, se, agora, o BC fizesse uma mudança muito drástica de comportamento, romperia exatamente aquilo que está defendendo. Eu acho que poderia reduzir, mas não creio que esse seja o entendimento do Comitê de Política Monetária.
O PIB do primeiro trimestre, com 1,9% de crescimento em relação aos últimos três meses de 2022, veio acima de todas as expectativas. Onde está a força da economia? Está restrita ao agronegócio? Os segmentos que dependem mais de juros estão ladeira abaixo.
Um economista supersticioso diria que é porque Deus é brasileiro. Mas, olhando os dados, o crescimento decorre, essencialmente, do conjunto de medidas fiscais tomadas nos últimos dois anos do governo Bolsonaro, particularmente, em 2022. E do pacote fiscal que veio com a PEC da Transição em novembro do ano passado. Estamos falando de 1,5% a 2% do PIB em incentivos. Esses benefícios se combinam com a redução de preços de vários setores, principalmente de energia e de itens que são fundamentais para o consumo das famílias. A combinação desses elementos gera um efeito positivo sobre o PIB. Mas, eu sempre coloco: imagine quanto seria o PIB do primeiro trimestre se tivéssemos uma taxa de juros razoável, civilizada, alinhada com aquilo que se pratica no restante do mundo?
Haveria um impacto maior no consumo das famílias, no setor de serviços e na própria indústria…?
Vamos ser diretos: se tivéssemos juros mais baixos, certamente a pressão financeira sobre as empresas seria menor. Teríamos um horizonte de investimento mais longo, porque o custo do capital estaria mais reduzido, e uma menor pressão sobre as finanças das famílias, que registram um altíssimo nível de endividamento. Teríamos, ainda, efeito sobre as finanças do governo federal, que são fortemente pressionadas pelos juros, já que comprimem o espaço em que o Estado poderia atuar para incentivar a economia, principalmente por meio de investimentos, não estou nem falando de gastos sociais, em infraestrutura, em tudo que aumenta o que chamamos de PIB potencial, que é a nossa capacidade de crescer. Na minha visão, a principal restrição à atividade econômica hoje é, essencialmente, a taxa de juros, que está num patamar profundamente desalinhado com o que deveria estar internamente e, certamente, com o resto do mundo.
Qual o impacto da aprovação do arcabouço fiscal sobre a economia?
O arcabouço fiscal foi um esforço conjunto de um Executivo federal que pegou um governo num contexto de conflagração política. É muito difícil, com as muitas frentes que o Executivo tem de lidar. E temos um Congresso que é bastante refratário a fazer avanços institucionais. Então, a combinação dessas forças gerou algo que, na minha visão, dá a certeza da garantia de controle das contas públicas, mas que, na minha avaliação, faz um ajuste excessivamente duro. Creio que se poderia suavizar o processo de ajuste fiscal em mais tempo, porém, entendo que a correlação de forças hoje não permite isso. Assim, o governo acabou fazendo um ajuste que eu considero progressivo, no sentido de que vai elevando a tributação sobre o andar de cima da sociedade, ao mesmo tempo em que consegue ampliar os gastos fundamentais associados ao salário mínimo, ao Bolsa Família e aos investimentos, que apesar de não ser um espaço grande, vão ter garantias no Orçamento. Isso é positivo para o Brasil. Mas, novamente, poderia ser melhor.
A reforma tributária, se sair, ajuda?
A reforma tributária, na minha visão, é a mãe das reformas. É importante entendermos algo, e, aqui, vou provocar o leitor: não existe reforma fatiada, se não existe reforma. Não dá para fatiar um bolo que não existe. O que estamos falando aqui é de um processo de reforma que começa pelos tributos indiretos que vai destravar grandes forças do crescimento no Brasil, principalmente pela desburocratização, a redução da complexidade tributária. Isso vai alinhar mais os setores, pois se vai deixar de gerar distorções que hoje bloqueiam fundamentalmente a indústria. Também vai melhorar a competitividade da pequena e da média empresa, que têm maior capacidade de exportar manufaturados, particularmente, para a América do Sul. Acredito que, com essa reforma passando, uma série de receios e medos, particularmente dos setores que hoje são mais resistentes a essa reforma, como o agro e o de serviços, vão começar a desaparecer e se passará a reconhecer que a compensação na forma de crescimento econômico mais do que superará aquilo que eles temem perder na forma de aumento de alíquotas de tributos.
A gente viu uma resistência muito grande do mercado financeiro em relação ao governo Lula. Mas, agora, o dólar está abaixo de R$ 4,90, a Bolsa de Valores nos 117 mil pontos e os juros futuros caindo. Como isso se explica?
O mercado tem memória curta, olha imediatamente aquilo que está na frente dele e reage de maneira a tentar entender qual vai ser o efeito sobre os ativos financeiros. Creio que o mercado está vendo que o governo Lula não veio aqui fazer nenhuma grande mudança institucional acelerada, radical. Está negociando, está discutindo. E acho que o mercado está começando a compreender que há benefícios em se olhar também para a parte de baixo da pirâmide social, para a distribuição de renda que garante consumo, a circulação de dinheiro. Não que se sensibilize com isso. Está tolerando e, ao tolerar, diminui a pressão, o constrangimento que se faz sobre o governo. Outro ponto: a própria forma como o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, lidou com a questão do marco fiscal agradou bastante o mercado, para desespero da base do governo, que gostaria que a gestão de Lula fosse mais para o confronto com a banca e a Faria Lima. Mas entendo que é isso que temos hoje em termos de correlação de forças. O governo está negociando para fazer um avanço substancial, principalmente, por meio da queda da taxa de juros, que, na minha visão, combinada com a reforma tributária, tem tudo para fazer o PIB crescer de maneira acelerada nos próximos anos.
Quanto está prevendo de crescimento para este ano?
Pelas mudanças que estamos vendo, estou prevendo algo entre 2% e 2,5%, com viés de alta, principalmente se o Banco Central se sensibilizar com relação aos indicadores da economia.
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