A regulamentação do trabalho intermediado por aplicativos, uma das grandes promessas de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), deve ter uma discussão mais complexa do que o esperado. São mais de 1,6 milhão de trabalhadores por aplicativo no país, divididos em entregadores de plataformas de delivery (386 mil) e motoristas de apps de caronas (1,27 milhão), que buscam garantias mínimas de proteção trabalhista, mas a maior parte não tem interesse em vínculo empregatício.
De acordo com a Frente de Apoio Nacional dos Motoristas Autônomos (Fanma), 99% dos motoristas querem proteção social permanecendo autônomos. A entidade reconhece que o modelo de CLT inviabilizaria o trabalho para usuários e plataformas, e acredita que a regulação não pode afugentar as mega empresas de inovação em mobilidade urbana do país.
Contador e motorista de aplicativo, Antonio Pereira do Nascimento Junior, 43 anos, teme que a regulamentação resulte em mais encargos tributários. "Não acho que seja uma boa ideia, pois vai acabar ficando mais caro, e gerando menos lucro", disse. Outro ponto negativo apontado pelo trabalhador é de que, na prática, o regime de CLT resultaria em menos segurança.
"Com um horário fixo de trabalho, vamos ter que aceitar qualquer corrida. Isso vai levar a gente para lugares perigosos, pois hoje, pelo menos a maioria dos motoristas seleciona para onde quer ir, pois a vida vale mais que dinheiro. Seria muito bom se, em menos horas, a gente batesse a meta, mas isso na prática não funciona. Para realmente render algo, precisamos passar o dia todo rodando", contou.
O governo criou, na última semana, um Grupo de Trabalho (GT) para iniciar discussões concretas sobre a regulamentação. A proposta ainda não possui um desenho, mas pretende aplicar mudanças na legislação trabalhista, visando contemplar os direitos dos motoristas de aplicativo. O coletivo terá que considerar a situação de empregados, trabalhadores autônomos e informais nos aspectos de condições de trabalho, remuneração e Previdência Social.
"O processo de 'uberização' é irreversível e mundial", destacou o advogado trabalhista Estácio Airton Moraes. Para ele, "ao contrário da festejada liberdade e autonomia do trabalhador, onde define os seus horários e dias de trabalho, não há uma garantia para o futuro" e a discussão tende a caminhar para um modelo de contrato de trabalho. "As relações de trabalho entre as empresas digitais e colaboradores autônomos têm trilhado rumo ao contrato de trabalho, por conta do controle exercido pela empresa digital sobre a atuação do condutor que presta os seus serviços", avaliou.
Para o motorista de aplicativo, Victor Procopio, 23 anos, que trabalha há vários anos na área, a criação do vínculo empregatício foge da finalidade das plataformas. "Os aplicativos nos dão a possibilidade de termos rendas extras em horários alternativos e podermos ter a liberdade de trabalhar como quisermos, dentro do estatuto da plataforma, e por isso estou dirigindo. Com a regulamentação, eu não conseguiria mais trabalhar como motorista", declarou.
Segundo ele, há também outras maneiras de ajudar a categoria. "Acredito que, para melhorar o nosso dia a dia, poderia ter algumas vantagens. Como desconto no IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores), desconto para trocar de carro, zero de tributos no combustível. Isso facilitaria e daria lucro", afirmou. "A discussão tem que ser feita entre representantes que têm o conhecimento prático de como é estar diariamente nas ruas, que conhecem as necessidades do motorista. Em cada estado existe uma demanda diferente, por exemplo", acrescentou Procopio, que começou a trabalhar como Uber no Rio de Janeiro e hoje está em Brasília.
Inspiração
Em viagem à Espanha, o presidente assinou memorandos para a cooperação com o governo espanhol na elaboração de uma regulamentação, visando aproveitar a experiência do país europeu, que em 2021 criou regras para esse tipo de atividade por meio de uma reforma trabalhista. A legislação espanhola obriga empresas de aplicativos a contratarem entregadores.
O texto, acordado com sindicatos e empregadores, considera os trabalhadores como assalariados.
O pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV) Direito Rio, Paulo Renato Fernandes, destacou que a regulação não tem uma "fórmula universal" e deve considerar o mercado dentro da realidade econômica de cada país. "Na Espanha há o estatuto do trabalhador autônomo. Em Portugal, por outro lado, você tem uma legislação que estabelece como regra que as pessoas devem criar empresas e essas empresas vão criar empresas para prestar serviços", exemplificou.
Ele ponderou que os vínculos empregatícios em outros países têm uma conotação diferente do regime de CLT exercido no Brasil. "Em síntese, o que todas essas regulamentações procuram fazer é justamente criar um ecossistema de mais equilíbrio e segurança jurídica para todos, mas são mercados diferentes. Economicamente, ao forçar esse movimento de inclusão, os encargos trabalhistas são incorporados e repassados para a sociedade", afirmou.
A Nova Zelândia reconheceu o modelo de contrato de trabalho do motorista da Uber sob o argumento do controle exercido pela empresa digital sobre os motoristas. Ficou garantido o direito a licença médica, férias, salário mínimo, horas trabalhadas e todos os direitos trabalhistas previstos nas leis do país. Outra decisão no Reino Unido reconheceu o negócio praticado pela Uber como ilegal e determinando a concessão da garantia de salário mínimo e férias aos motoristas.
O grande desafio da legislação, de acordo com Fernandes, é contemplar ambos os lados, de trabalhadores que querem permanecer autônomos, mas garantindo direitos de seguridade social. "Quando se fala em formalização, logo se pensa que todos se tornarão empregados, mas as novas formas de trabalho não se enquadram no portfólio legal da CLT. O mercado de trabalho se apresenta hoje com outra configuração, então a regulação tem que ser aberta. Tem que permitir que quem quiser e tenha condições possa empreender também."
Previdência
Há resistência por parte dos trabalhadores e dos aplicativos pela imposição de contratos de CLT. No entanto, as plataformas já cogitam assumir mais deveres em relação a profissionais vinculados e avaliam arcar com uma parcela das contribuições previdenciárias de seus associados.
De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apenas um a cada quatro (23%) entregadores e motoristas autônomos pagam contribuição ao INSS. Os 77% que não contribuem com a Previdência Social, além de não terem seu tempo de trabalho contado para a aposentadoria, não estão protegidos em casos de acidentes.
Em comunicado, a Uber afirmou defender que as plataformas paguem parte da contribuição ao INSS. "É fundamental que essa integração previdenciária seja feita a partir de um modelo mais vantajoso para motoristas e entregadores do que as opções atuais, consideradas muito caras e burocráticas por grande parte desses trabalhadores", destacou.
A empresa disse ter realizado pesquisas de opinião entre colaboradores. "O posicionamento da empresa foi construído após pesquisas realizadas pelo Instituto Datafolha com motoristas e entregadores, que revelaram os motivos de não aderir ao formato atual da Previdência, e com a população brasileira, que revelou apoiar mudanças para ampliar a cobertura da Previdência às novas formas de trabalho via aplicativos", reiterou.