A visita de Nicolás Maduro ao Brasil após um hiato de quase oito anos não só gerou polêmica pelas acusações de que pesam contra o presidente venezuelano e as falas do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre o país vizinho, mas também pela dívida bilionária que a Venezuela tem com o governo brasileiro.
Maduro veio ao Brasil para participar de uma cúpula com líderes de 11 países da América do Sul em Brasília que havia sido proposta por Lula.
A última vez que o presidente venezuelano esteve no Brasil foi em julho de 2015, quando participou de uma cúpula do Mercosul em Brasília, durante o governo de Dilma Rousseff (PT).
Desde 2019, ele estava impedido de entrar no país após uma portaria editada pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) proibir seu ingresso e de outras autoridades venezuelanas no Brasil.
Bolsonaro revogou a portaria um dia antes de deixar o cargo em uma negociação com o governo de transição para abrir a possibilidade de Maduro participar da posse de Lula, mas o presidente venezuelano acabou não participando da cerimônia.
Maduro só voltou ao Brasil de fato no último domingo (28/5), quando desembarcou em Brasília para participar da cúpula. No dia seguinte, teve uma reunião bilateral com Lula, em que os dois trataram desta dívida e de como ela será quitada.
Maduro e Lula foram questionados após o encontro por jornalistas sobre o total da dívida. Lula disse não saber e questionou Maduro: "Você sabe qual é o tamanho da dívida?".
O presidente venezuelano respondeu: "Vai ser estabelecida uma comissão para estabelecer esse tamanho e retomar os pagamentos".
De acordo com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, Maduro pediu que seja criado um grupo de trabalho com o governo brasileiro para consolidar o valor do débito e, a partir daí, reprogramar seu pagamento.
Pelo lado brasileiro, devem participar a Secretaria-Executiva da Câmara de Comércio Exterior (Camex), vinculada à Fazenda, a secretaria do Tesouro Nacional e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) - que é um dos principais interessados no assunto.
Mas, afinal, de quanto é essa dívida, de onde ela veio e quem vai pagar essa conta?
Qual o tamanho da dívida da Venezuela?
Após o encontro de Lula e Maduro, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) informou à BBC News Brasil que o valor da dívida venezuelana totaliza atualmente quase US$ 1,27 bilhão (R$ 6,4 bilhões).
"Os débitos da Venezuela junto ao governo brasileiro soma US$ 1.268.151.276,81, sendo: i) US$ 1.095.002.908,09 referente a valores já indenizados pelo Fundo de Garantia à Exportação (FGE); ii) US$ 53.987.162,42, referentes a indenizações a serem pagas pelo FGE".
O Fundo de Garantia à Exportação é um fundo de natureza contábil vinculado ao Ministério da Fazenda. Ele foi criado em setembro de 1997 para cobrir operações amparadas pelo Seguro de Crédito à Exportação (SCE).
O Seguro de Crédito à Exportação é um mecanismo de garantia oferecido pela União para proteger as exportações brasileiras de bens e serviços de potenciais riscos comerciais, políticos e extraordinários e, assim, evitar calotes às empresas nacionais.
Caso haja inadimplência de quem comprou os bens e serviços, o FGE indeniza o financiador e busca recuperar o valor em atraso do devedor.
O BNDES é o principal financiador público de longo prazo para operações de comercialização de exportações.
De onde vem a dívida da Venezuela?
Segundo o MDIC, os débitos da Venezuela são referentes a uma inadimplência relativa a exportações brasileiras de bens e serviços para o país vizinho que contrataram o Seguro de Crédito à Exportação.
"As operações foram financiadas em sua maior parte pelo BNDES, porém havendo operações com financiadores estrangeiros", disse a pasta em nota.
O BNDES, que era vinculado ao então Ministério da Economia durante o governo de Bolsonaro e passou a fazer parte do MDIC sob Lula, atua como principal instrumento de execução da política de investimentos do governo federal.
Durante os governos petistas, tanto nos dois primeiros mandatos de Lula quanto nos de Dilma Rousseff, atual presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD, popularmente conhecido como "Banco dos Brics"), houve desembolsos bilionários no banco, em particular para o financiamento à exportação dos bens e serviços de engenharia brasileiros.
No caso da Venezuela, foi concedido R$ 1,5 bilhão a vários projetos de infraestrutura realizados por empresas do Brasil.
Como o próprio banco explica em seu site, "nessas operações, assim como em todas as outras que o banco realiza, o BNDES desembolsa os recursos exclusivamente no Brasil, em reais, para a empresa brasileira, à medida que as exportações vão sendo realizadas".
Ou seja, a empresa brasileira que vendeu produtos ou serviços para fora do país recebe um pagamento do BNDES por isso.
Quem fica com a dívida neste caso é a empresa ou país estrangeiro que comprou o bem e serviço, que fica com a responsabilidade de pagar de volta o BNDES com juros, em dólar ou em euros.
Se há inadimplência, o BNDES aciona a estrutura de garantias e é ressarcido por mecanismos como o FGE.
A maior parte das operações de exportação de serviços de engenharia beneficiou cinco grandes empreiteiras brasileiras, todas envolvidas na Operação Lava Jato.
Especificamente nessa categoria, de financiamentos para exportação de serviços a outros países, três deram calote - a Venezuela entre eles - "em um valor total de US$ 1,09 bilhão acumulado até março de 2023", segundo o BNDES.
"Outros US$ 518 milhões estão por vencer desses países", informou o banco.
Quem paga essa conta?
O governo brasileiro explicou em nota à BBC News Brasil que o FGE "cobriu o calote".
No entanto, segundo o economista e professor do Insper Sérgio Lazzarini, isso é uma "falácia". Ele explica que, por conta das dívidas e dos calotes acumulados, o patrimônio do fundo foi minguando, cujos recursos são provenientes, dentre outras fontes, do orçamento federal.
"Quem paga essa conta é, em última análise, o contribuinte", diz.
O problema está, segundo Lazzarini, justamente na avaliação de risco dos empreendimentos nesses países.
Ele publicou, ao lado de outros pesquisadores, um estudo que analisou o custo financeiro incorrido em algumas das operações realizadas pelo BNDES entre 2007 e 2015.
Segundo Lazzarini, o banco emprestou para países "com altíssimo risco de crédito e isso não foi precificado adequadamente".
"Então, esse fundo, vire e mexe, está tomando calote. Se ele toma muito calote, não há recursos", diz o economista.
"Se estivéssemos emprestando a países com baixo risco de crédito, o mecanismo funciona. Mas tomamos calote atrás de calote."
Desde 2020, é discutido no âmbito do governo federal um novo modelo para o FGE, mas nada foi decidido até agora.
Em fevereiro, durante a posse de Aloizio Mercadante como presidente do BNDES, Lula disse ter "certeza" que a Venezuela e outros países inadimplentes quitarão as dívidas com o banco durante seu governo.
"Porque são todos países amigos do Brasil e certamente pagarão a dívida que têm com o BNDES", disse Lula.
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