Com a nova regra de pagamento de precatórios prevista na emenda constitucional 113, a chamada "PEC do calote", em 2022, último ano do governo Bolsonaro, a União conseguiu registar o primeiro superavit primário desde 2013. Mas os números positivos escondem o calote de uma conta que foi empurrada para este ano. Somando mais de R$ 50 bilhões e sem previsão orçamentária para a quitação, a perspectiva de recebimento desses valores deve ficar ainda mais distante.
A aprovação da PEC em 2021, permitiu que o governo postergasse os pagamentos de 2022 para 2023. Na previsão da LOA 2023, o montante disponível para a quitação dos débitos é inferior à dívida transferida do ano anterior. Desta forma, o valor que não poderá ser pago em 2023, deverá ser empurrado para 2024, aumentando a crescente bola de neve.
Conforme a regra dos precatórios, o governo federal deve quitar primeiro os papéis de pequeno valor — até R$ 78 mil. Em seguida, vêm as dívidas que têm características alimentares com limite até R$ 234 mil. Neste grupo, credores com mais de 60 anos e pessoas com doenças ou deficiências têm prioridade. Na sequência, são efetuados os demais pagamentos. Quantias superiores e demais precatórios entram na próxima rodada de acertos.
No entanto, a prioridade muda quando o precatório é "empurrado" para o ano seguinte. O calote torna esses títulos prioritários, independentemente de tipo ou valor. Sem previsão para quitar o saldo atrasado no orçamento de 2023, quem tiver precatório emitido no ano, mesmo os prioritários, deve esperar, ao menos até 2024, para receber.
Com base na lei orçamentária em vigor, o calote deve girar em torno de R$ 51,2 bilhões. O valor, somado ao resíduo da dívida anterior, deve criar uma bola de neve de difícil solução para o governo nos próximos anos. "Há mais de R$ 50 bilhões de precatórios acumulados (de anos anteriores)", disse em fevereiro o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron.
Sem mudança
Pelo menos por enquanto, o novo governo não deve mudar a sistemática de pagamentos. Essa é a aposta do presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco), Mauro Silva. "Não foi uma proposta do atual governo. Está sendo útil para eles, então não vão propor uma mudança em um curto espaço de tempo. Não faz sentido político para eles (governo Lula)", aponta o auditor.
Silva destaca que o problema tende a crescer nos próximos anos. "A bola de neve virá. Ano passado ninguém sentiu muito, esse ano vão começar a sentir, com o passar dos anos haverá uma pressão para que isso tenha uma solução", prevê.
A maioria dos precatórios da União está relacionada à reclamações junto à Previdência Social e a questões trabalhistas dos servidores públicos, enquadradas como alimentares. Mas o grosso do volume financeiro está relacionado a questionamentos tributários envolvendo empresas. Para o professor de Direito Tributário e sócio do VRMA Advogados, Paulo Vieira da Rocha, os pequenos credores, em especial funcionários públicos e aposentados com valores a receber da União, mesmo inseridos como prioridade, ainda devem enfrentar uma longa espera. "No curto prazo não há muita esperança de receber. A única forma de abreviar o tempo é vendendo esses precatórios com um enorme deságio", avalia Rocha.
Marco fiscal
Com o teto de gastos sendo substituído pelo novo arcabouço fiscal, o tema dos precatórios deve voltar para a pauta do governo. "Sem o teto de gastos e com o novo arcabouço fiscal, a legitimidade (da emenda constitucional dos precatórios), que para mim nunca existiu, se sustenta ainda menos. O pouco que a regra dos precatórios tinha razão de ser começa a ruir, começa a desaparecer. Ela já era insustentável, tanto juridicamente quanto em matéria de finanças públicas", destaca o professor Paulo Rocha.
Segundo Mauro Silva, não faz sentido manter a regra do "calote" com o novo arcabouço. "Com a mudança da regra fiscal, não tem mais sentido essa regra restritiva de pagamento de precatórios", defende. Para ele, a União trata de forma diferente os seus credores. "Me avise se o governo atrasar o pagamento para os bancos. Para os credores alimentares, ele rola (a dívida). O tratamento que o governo dá para o tipo de credor A e o tipo de credor B, não é o mesmo", acusa o auditor fiscal.