As lacunas do novo arcabouço fiscal, anunciado na quinta-feira pelo governo Lula, dão margem a incertezas quanto à sustentabilidade da regra. A princípio, o modelo foi bem recebido pela ala política e econômica, mas a proposta tem fragilidades, pois não detalha como chegar aos resultados almejados. Alguns pontos do modelo desenhado preocupam especialistas, como o foco concentrado em ganhos de receita, o incentivo a aumento de receitas extraordinárias e o piso e a qualidade do investimento.
O Ibovespa, principal índice da bolsa de valores de São Paulo (B3), fechou a sessão de ontem em forte queda. O índice recuou 1,77%, aos 101.882 pontos. Apesar do desempenho refletir, em parte, um movimento de realização de lucros após os cinco dias consecutivos de alta do índice, analistas avaliam que pesou no mercado a falta de elementos para que as contas públicas fechem. Esse fator também turbinou os juros futuros.
Na análise da nova âncora fiscal, o mercado vê com cautela a relação entre receita e despesa, essencial para a economia brasileira cumprir as metas de superavit estabelecidas. O economista Fabrício Gonçalvez, CEO da Box Asset Management, ponderou que as contas deste ano ainda devem ficar no vermelho.
"As principais dúvidas sobre o arcabouço são sobre a viabilidade de superavit primário nos próximos anos e eventuais mudanças do texto, que ainda não foi apresentado no Congresso. A previsão, segundo o próprio Ministério da Fazenda, é de que teremos um deficit primário de 0,5% do PIB (Produto Interno Bruto) este ano. Em 2024, o objetivo é zerar esse déficit. Isso traz desconfiança dos agentes econômicos", destacou Gonçalvez.
Em nota técnica, o Instituto Millenium avaliou que as diretrizes apresentadas no novo arcabouço não devem controlar a dívida pública. "A nova proposta não inspira confiança quanto a sua capacidade de manter a dívida pública sob controle, o que pode mudar quando o governo apresentar o texto", observou a instituição.
"É importante ressaltar que a meta fixada está bastante aquém do resultado necessário para a fundamental estabilização do crescimento da dívida pública em relação ao PIB, que pressiona os juros e compromete o investimento e, por consequência, o crescimento econômico", afirmou o instituto na nota.
Busca por arrecadação
Na tentativa de ampliar a capacidade de gasto para o ano subsequente, que está condicionada ao aumento da arrecadação, a proposta indica que haverá forte incentivo para o governo buscar fontes de receitas extraordinárias. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já adiantou que, nas próximas semanas, o governo deve enviar medidas de revisão tributária de setores hoje isentos, como o de apostas eletrônicas e também das "big techs" — grandes empresas de tecnologia. Essas medidas viriam complementar o arcabouço e representam algo em torno de R$ 150 bilhões.
O economista Murilo Viana, especialista em contas públicas, prevê que deve haver dificuldade de aprovação de certos pontos no legislativo. Além disso, segundo ele, alguns dos novos alvos de taxação podem provocar impopularidade para o governo Lula. "O governo tem sinalizado que pretende apertar o cerco em relação às importações pouco tributadas ou não tributadas, como Shein, Aliexpress e outras plataformas de comércio on-line cada vez mais utilizadas pelos brasileiros para comprar produtos mais baratos. Isso pode, evidentemente, gerar descontentamento de uma parcela da população", frisou o especialista.
A taxação das big techs, de acordo com o economista, também deve ser difícil de implementar. "Em uma economia de plataformas, como por exemplo a Uber, que opera com facilidade em diversos países, é muito fácil deslocar o resultado financeiro de um país 'subtributado'. Buscar aumentar a arrecadação por meio dessas empresas é de difícil execução. O caminho não vai ser fácil, o ajuste vai se dar muito sobre a receita e não vai ser nem um pouco trivial buscar por esse tipo de receitas", avaliou Viana.