Os casos recentes de trabalho análogo à escravidão aumentaram a pressão sobre o governo para que fortaleça o combate a esse tipo de crime. Entidades que representam trabalhadores defendem o endurecimento das punições para empresas envolvidas, incluindo a perda das propriedades. Elas apontam para o desmonte da estrutura de fiscalização, que conta com um número muito baixo de auditores fiscais do trabalho em atuação.
Após a divulgação de vários casos de exploração de trabalhadores em diversas regiões do país, o governo começou a anunciar medidas. O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, adiantou ao Correio, em 4 de março, que a "lista suja" de empresas condenadas por trabalho análogo à escravidão seria retomada. O documento foi publicado no dia seguinte, com 132 novos nomes. Ao todo, são 289 empresas e pessoas físicas flagradas explorando trabalhadores em condições degradantes.
Outras medidas estão em elaboração. Um grupo de trabalho formado por integrantes de vários ministérios será anunciado nos próximos dias para tratar do tema. O Executivo também trabalha na formulação do 3º Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, já que a última versão foi criada em 2008, 15 anos atrás. O objetivo, agora, é implementar mais medidas de caráter preventivo.
Entidades que representam trabalhadores têm se reunido com integrantes do governo e cobrado ações mais fortes, além de propor medidas que ataquem a causa do problema. O presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar), Gabriel Bezerra, relata que o governo tem sido "muito sensível" às demandas apresentadas pela entidade, e destaca a importância do retorno do Ministério do Trabalho à estrutura da Esplanada.
"Temos um ministério que abre o diálogo. Temos levado diversas pautas para o governo. Defendemos, por exemplo, a recriação da Política Nacional dos Assalariados Rurais, visando o enfrentamento dos problemas do campo, como a informalidade, a educação, a saúde, e a previdência", explica Gabriel. "Nosso papel, como movimento sindical, é cobrar do governo", acrescenta.
O campo é o setor em que há mais casos de trabalho degradante, embora eles não se restrinjam à área rural. Segundo levantamento do Observatório Digital do Trabalho Escravo, iniciativa que inclui o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), os setores que lideram os resgates são: criação de bovinos (29%); cultivo de cana-de-açúcar (14%); e produção florestal em florestas nativas (7%).
"Os casos de trabalho escravo não são em cadeias pobres. Eles ocorrem em cadeias muito ricas. Os números cresceram nos últimos seis anos. É a perversidade do agro, que tem uma ganância cada vez mais forte e acaba escravizando", afirma Gabriel. "Falamos de agro 4.0, desenvolvido, mas isso é só no desenvolvimento da produção, não para os trabalhadores. Temos salários péssimos, dificuldade de formar vínculo empregatício, não temos políticas públicas", completa.
Segundo Gabriel, a precarização das relações de trabalho é uma das principais causas do aumento de casos de trabalho análogo à escravidão, especialmente após a reforma trabalhista do governo de Michel Temer (MDB), em 2017.
O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) do Distrito Federal, Rodrigo Rodrigues, faz a mesma avaliação. "Temos subtração de direitos, que está muito latente no Brasil em várias formas de contratação que não garantem absolutamente nenhum direito aos trabalhadores", afirma. "O regime de trabalho que se assemelha à escravidão é muito absurdo, mas é fruto de uma cultura herdada do colonialismo brasileiro, que não se superou na lógica de trabalho no Brasil. Muitas vezes, empregadores ainda entendem que os trabalhadores são quase como escravos", enfatiza.
Para Rodrigo, os casos no campo têm mais visibilidade por conta do imaginário envolvendo a escravidão, que relaciona o crime com as fazendas e senzalas. Porém, as cidades também reúnem grandes números de trabalhadores nessa situação, como na indústria têxtil, com casos de imposição de jornadas de trabalho extensas e a criação de dívidas por conta do trabalho.
"Queremos a revisão da legislação trabalhista. A fragilização dos direitos favorece quem quer cometer esse tipo de absurdo. É preciso dar mais garantias aos trabalhadores e fortalecer os sindicatos", diz o presidente da CUT-DF. A visão é ecoada pelo presidente da Contar, que destaca que as entidades atuam na fiscalização, denúncia de casos, na cobrança do poder público e no apoio aos trabalhadores.
Punições mais duras
Outra demanda é o fortalecimento da estrutura de fiscalização. Segundo o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), o número atual de 1.959 auditores — servidores responsáveis pelo resgate de trabalhadores — é insuficiente para as operações, já que existem 1.600 cargos vagos. O último concurso público foi realizado em 2013.
Segundo o vice-presidente do sindicato, Carlos Fernando da Silva Filho, o contingente de fiscais passa pelo pior momento dos últimos 30 anos. Para demonstrar o sucateamento, ele citou o caso da gerência de Garanhuns, em Pernambuco, cidade onde nasceu o presidente Lula. Apenas um auditor está lotado no órgão, que abarca 160 municípios pernambucanos. Na quinta-feira, a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, sinalizou que abrirá novos concursos para auditores, mas não especificou a área.
"Eu diria que ainda estamos longe de erradicar o trabalho escravo no Brasil. Por questões econômicas, desigualdades, oscilações de governo e pela situação econômica. Além disso, temos essas fragilidades institucionais, especialmente no âmbito da fiscalização do trabalho", diz Carlos da Silva Filho.
A punição prevista em lei para quem comete o crime também não é vista como suficiente para dissuadir as empresas que lucram com a exploração dos trabalhadores. Os auditores fiscais defendem a expropriação de terras e de propriedades urbanas onde forem constatados casos de trabalho escravo. A medida tramita no Senado Federal, e foi aprovada pela Comissão de Direitos Humanos, por unanimidade, na última quarta-feira.
Carlos destaca que a "lista suja" foi um avanço para a dissuasão econômica do crime, mas é preciso ter punições mais severas. Empresas com o nome no documento têm dificuldades de fechar acordos internacionais, por exemplo, já que o mercado cobra produção responsável. A oferta de crédito para essas empresas também é restrita.
"A perda da propriedade, sim, sinaliza algo que pode mudar o rumo disso, apontando para a erradicação (do trabalho escravo). A gente acredita nisso, e é claro que não é essa medida sozinha, mas combinada com o fortalecimento de toda a estrutura e das autoridades que atuam no combate ao trabalho escravo, além de garantia de orçamento", finaliza o auditor.
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