Jornal Correio Braziliense

Âncora fiscal

Entenda os pontos da proposta de arcabouço fiscal apresentada por Haddad

Proposta do ministro da Fazenda reúne metas de superavit e controle de gastos a partir do crescimento das receitas. Novo modelo é bem recebido pelo mercado e no meio político, mas não detalha como chegar aos resultados almejados

Depois de muita expectativa, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou, ontem, o novo arcabouço fiscal. Em linhas gerais, a regra concilia metas de superavit primário com novos parâmetros para controlar as despesas do governo. A proposta continuará limitando o aumento de gastos mas, em vez da inflação, terá como base o desempenho da receita, com um piso de 0,6% e teto de 2,5% de aumento real (descontada a inflação).

A proposta agradou o mercado por não acabar definitivamente com a regra do teto. Mas analistas reconhecem que será desafiador zerar o rombo fiscal no próximo ano, como prevê a equipe econômica, e voltar a ter superavit primário (economia para o pagamento da dívida pública) em 2025.

O novo arcabouço prevê uma melhora gradativa do resultado primário das contas públicas, reduzindo rombo de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB), previsto pelo governo para este ano; zerando em 2024, e passando para 0,5% do PIB, em 2025, e para 1%, em 2026, ano em que o governo prevê o início do processo de estabilização da dívida pública.

Segundo a proposta do governo, haverá uma banda de 0,25 ponto percentual para mais ou para menos em relação ao resultado primário, medida semelhante à utilizada na política monetária. E, para o cumprimento da meta, a regra prevê que a maioria das despesas poderá aumentar em até 70% do crescimento da receita acumulado em 12 meses de julho a junho do ano anterior.

Significa dizer que, se a receita crescer 1% neste ano, em termos reais (descontada a inflação), até junho de um determinado ano, no seguinte, o governo poderá aumentar as despesas em 0,7%. Contudo, se o governo não cumprir a meta, haverá uma redução desse percentual para 50% e ele será mantido até que os objetivos fiscais sejam cumpridos.

Os gastos com saúde e educação não devem obedecer a esses critérios, porque possuem regras de correção e vinculação à receita previstas na Constituição. Os pisos constitucionais de saúde e educação são corrigidos por um percentual da receita corrente líquida (RCL), de 15% e de 18%, respectivamente. Com isso, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e o piso da enfermagem foram excluídos desses limites, "porque são regras constitucionais existentes", conforme dados da Fazenda. Os investimentos também ficarão fora da regra e terão um piso.

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Credibilidade

Ao apresentar o novo arcabouço ao lado da ministra do Planejamento, Simone Tebet, Haddad reconheceu que a regra pretende recuperar a credibilidade do governo na gestão das contas públicas, mas não fará isso sozinha. Haddad afirmou que a fórmula proposta pelo governo é apenas um passo e disse que prepara um pacote de medidas para ampliar a arrecadação do governo em até R$ 150 bilhões por ano.

"Isso aqui (o novo arcabouço fiscal) não é uma bala de prata que resolve tudo. É o começo de uma longa jornada. É um plano de voo de como vamos enfrentar o problema da economia brasileira", afirmou Haddad.

Os gastos com investimentos também terão uma regra diferente das demais despesas. Contarão com um piso e uma espécie de bônus que será ativado se o governo entregar um superavit primário acima da banda superior da meta. Coube aos secretários do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, e de Política Econômica, Guilherme Mello, detalharem esses mecanismos.

Ao justificarem o piso para os investimentos, os secretários defenderam uma nova forma de cortes de gastos em momentos de ajuste para adequação da nova meta fiscal, como a redução do crescimento do Estado, por exemplo, diminuir contratações e concursos.

Ceron informou que o piso atual deve girar em torno de R$ 55 bilhões, passando para R$ 75 bilhões com a inclusão do Minha Casa Minha Vida. Ele acrescentou que o governo deverá concluir, na próxima semana, um pacote de medidas para estimular as Parcerias Público-Privadas (PPPs), mudando o patamar de garantias para estados e municípios, em grande parte.

Dificuldades

Apesar da reação positiva do mercado, analistas veem o novo arcabouço com cautela. Para o economista Tiago Sbardelotto, da XP Investimentos, "as contas não fecham". "A nova regra apresentada tem um nível de complexidade superior ao teto de gastos vigente, tornando mais difícil a avaliação dos cenários", destacou.

Segundo ele, mesmo considerando um crescimento do PIB próximo de 1,8%, a médio prazo, a regra não é capaz de entregar os resultados primários nem de proporcionar a convergência da dívida pública, "mesmo com a elevação de receitas em 1,0 ponto percentual do PIB". Além disso, mas diante do crescimento esperado das despesas nos próximos anos, "só será possível atingir as metas de resultado primário se houver um incremento substancial nas receitas".

O especialista em contas públicas Guilherme Tinoco considerou a nova regra fiscal razoável por limitar os gastos, mas apontou como um dos pontos mais sensíveis o fato de ainda haver incertezas em torno do assunto. "Não temos a mínima ideia de como o governo vai conseguir entregar essa trajetória de primário prometida e sem isso é difícil avaliar como um todo, porque no final das contas queremos saber qual vai ser a trajetória de dívida associada", alertou.

Os economistas Felipe Salto e Josué Pellegrini, da Warren Rena, também elogiaram a iniciativa do novo arcabouço e reconheceram que serão necessárias medidas adicionais para o governo conseguir atingir as metas propostas no arcabouço. "A nova regra fiscal é a primeira etapa de um conjunto maior de providências que precisarão ser tomadas para viabilizar sua aplicação. Essas medidas terão que elevar a receita de modo significativo, possibilitando o controle da despesa obrigatória, sem sacrificar determinado conjunto de gastos, como investimentos", destacaram.

"Ordem no sistema tributário"

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, assegurou que o governo federal não pretende criar novos tributos ou aumentar a alíquota dos impostos existentes para aumentar a arrecadação e atingir as metas do novo arcabouço fiscal. No entanto, reconheceu que a equipe econômica vai buscar recompor a arrecadação cobrando de setores que segundo ele são "mais abastados".

Haddad adiantou que, nas próximas semanas, o governo deve enviar medidas de revisão tributária de setores hoje isentos, como o de apostas eletrônicas. Essas medidas viriam complementar o arcabouço e representam algo em torno de R$ 150 bilhões. "Nós entendemos que temos que recuperar uma trajetória de credibilidade. Se cumprirmos essa trajetória com esses mecanismos de controle, vamos chegar a 2026 numa situação de bastante estabilidade", destacou.

"Se aumento de carga tributária se entende criação de novos tributos ou de alíquotas, isso não está no nosso horizonte. Não estamos pensando em recriar a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira). Não estamos pensando em acabar com o Simples. E não pensamos em reoneração da folha de pagamentos", garantiu o ministro.

Haddad lembrou, contudo, um compromisso de campanha de Lula. "Se trata, portanto, da frase do presidente Lula durante campanha: 'Meu governo vai colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda'. Na prática, significa que nós temos que fazer quem não paga imposto, pagar."

O chefe da pasta já havia indicado, no início do mês, a intenção de taxar lucros e dividendos de sites de apostas esportivas, o que já ocorre em outros países. A ideia do ministério com a taxação é justamente ampliar a arrecadação, para compensar perdas de receita com a correção da tabela do Imposto de Renda (IR), que agora prevê a isenção de quem ganha até dois salários mínimos.

O ministro avaliou que há grandes sistemas que estão à margem do sistema, e citou a taxação das chamadas "big techs" — grandes empresas de tecnologia — adotada em outras nações. "Ou botamos ordem nesse sistema (...), ou vai continuar aparecendo solavanco na economia", afirmou o titular da Fazenda.

Haddad considera urgente se aprovar uma reforma tributária. "Muitos setores estão demasiadamente favorecidos por regras de décadas. Muitas caducaram, precisam ser revogadas", frisou o ministro. "Se quem não paga imposto passar a pagar, todos nós vamos pagar menos juros, para isso acontecer, quem está fora do sistema tem que vir pro sistema", afirmou o chefe da equipe econômica.