Distantes mais de 3 mil quilômetros de familiares e amigos, os 207 trabalhadores, a maioria deles vindos do estado da Bahia, que atuavam na colheita de uva para uma empresa contratada por três grandes vinícolas de Bento Gonçalves(RS), relataram aos fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que, além das condições degradantes dos alojamentos, sofriam com jornadas superiores a 14 horas diárias, sem folgas, e também passavam por castigos físicos do empregador e de seus "jagunços", caso reclamassem de algo.
Foi após uma dessas sessões de tortura, em que seis trabalhadores foram agredidos recebendo descargas elétricas de uma arma de choques, por postarem um vídeo nas redes sociais reclamando das condições do alojamento, que se iniciou o resgate dessas 207 pessoas. Na madrugada, após a surra, eles decidiram fugir do local, mesmo sem ter para onde ir. Três deles pediram socorro em um posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que entrou em contato com a fiscalização do MTE para organizar a operação de resgate.
Longe de ser um caso isolado, o que ocorreu na Serra Gaúcha se repete em muitas localidades do país, como mostram dados da fiscalização do MTE. O número de resgates de trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão tem crescido. Somente em 2022, foram 2.575 casos, maior quantidade em 10 anos.
O fiscal de inspeção do trabalho Henrique Mandagará, que participou da operação em Bento Gonçalves, contou ao Correio o que viu ao chegar ao local: "Era impressionante, tinha quartos no subsolo, sem janela, e também encontramos spray de pimenta, dispositivos de choque, e o mais impactante era ver na entrada um cassetete que segurava aberta a porta da pensão, algo que funcionava como um aviso", comenta o fiscal.
Os resgatados também contam que era fornecida alimentação fria, muitas vezes, azeda, e que, se reclamassem, acabavam apanhando com tapas, socos e um cabo de vassoura. Além disso, segundo os relatos, valores de alimentação e alojamento eram descontados dos trabalhadores, que em alguns casos, ficavam em débito com o empregador.
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Crime
O Código Penal, no artigo 149, define as condições que caracterizam o trabalho análogo à escravidão, que são: o trabalho em condições degradantes, o trabalho forçado, a jornada exaustiva e situações em que se configuram a escravidão por dívidas com a retenção da pessoa no lugar de trabalho.
A lei prevê que a ocorrência de ao menos uma destas situações torna possível caracterizar o trabalho análogo à escravidão. Mandagará, cauteloso, disse que as investigações ainda estão em curso, mas existem indícios de todas as quatro condições previstas na lei, no caso do Rio Grande do Sul.
O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu, em 2007, que não é necessária a comprovação da "coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção" para a configuração do trabalho escravo, mas até disso havia indícios. Outra decisão do Supremo confirma a competência para esse tipo de crime à Justiça Federal, com a investigação da Polícia Federal (PF).
A PF, que participou da operação, prendeu em flagrante Pedro Augusto de Oliveira Santana, de 45 anos, proprietário da empresa Fenix Serviços Administrativos e Apoio a Gestão de Saúde LTDA, investigado como responsável por arregimentar os trabalhadores na Bahia. A Fenix atuava como terceirizada das vinícolas, que alegaram desconhecer o tratamento dado aos empregados. Santana saiu em liberdade, após o pagamento da fiança, estipulada em quase R$ 40 mil.
Apesar dos relatos de surras, o empresário não teve a prisão decretada por tortura, prática definida como "submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com violência ou grave ameaça, a sofrimento físico ou mental, para aplicar castigo", considerado um crime hediondo e inafiançável.
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