A taxa básica de juros brasileira, conhecida como Selic, tem sido alvo de intensas críticas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas últimas semanas. Para o chefe do Executivo, “não existe nenhuma justificativa” para a taxa estar em 13,75%, patamar atingido em pouco mais de 15 meses.
- Lula diz que não há explicação para Selic em 13,75%
- Nas entrelinhas — "Lula tem razão: os juros estão exagerados"
A Selic é definida ao longo do ano em reuniões do Copom. Com a pandemia da covid-19 e o início da guerra na Ucrânia, a taxa chegou ao patamar mais baixo da história, 2% ao ano. De lá para cá, desde então, o índice cresceu exponencialmente em um período considerado por especialistas como curto e estacionou em 13,75%.
O patamar colocou o país como o primeiro com maior taxa de juros real do mundo: o indicador é medido após subtrair do valor do rendimento a inflação acumulada no período. Com a inflação calculada em 5,5%, prevista pela Focus, a taxa Selic real torna o patrimônio do investidor 8,25% maior. Nenhum outro país pratica uma taxa de juros real desse tamanho.
Voltado às questões sociais, Lula afirma que a taxa prejudica os mais pobres e beneficia os ricos. "Qual é a lógica da desconfiança que o mercado tem de tudo que a gente fará de investimento? Eu não vejo essa gente falar uma vez de dívida social. Nós temos uma dívida social de 500 anos com esse povo. A única coisa que não é tida como gasto por essa gente de mercado é o pagamento de juros da dívida”, questionou o chefe do Executivo.
Para entender como a taxa impacta o Brasil e os brasileiros, além de explicar como ela é calculada, o Correio reuniu o conhecimento de dois especialistas para responder às questões. Confira abaixo.
O que é a taxa Selic?
Considerada a taxa básica de juros da economia brasileira, a Selic é estabelecida pelo Banco Central nas reuniões do Conselho de Política Monetária (Copom). A taxa também é conhecida como Selic Meta por ser, literalmente, uma meta de taxas pela qual o mercado financeiro irá operar as negociações — os investimentos e títulos federais deverão ser negociados com juros próximos ao estabelecido ou menores do que a meta. Ela é, portanto, o indicador principal que regula todas as outras taxas de juros do país.
“Primeiro o Copom avalia as perspectivas de inflação da economia e se ela é condizente com a meta de inflação estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Ao final da reunião do Copom, o colegiado do Banco Central decide a taxa Selic-meta. Contudo, os juros não se alteram na canetada”, explica o economista Murilo Viana, especialista em finanças públicas.
Para cumprir a meta Selic, o Departamento de Mercado Aberto (Demab) do BC começa a operar a gestão da fluidez do mercado pela compra e venda temporária de títulos públicos no mercado interbancário. Nesse mercado, o BC disponibiliza — e também recompra — títulos públicos a bancos, que os utilizam como garantia nos empréstimos feitos com outros bancos.
Os títulos públicos são negociados para que o Estado obtenha recursos para o financiamento da dívida pública e suprir qualquer necessidade de déficits do orçamento público, além de regular o custo do dinheiro no sistema financeiro nacional. É como se o Estado pegasse um empréstimo com investidores.
Os valores emprestados ao governo são emprestados com juros cobrados com base na taxa Selic. Para controlar a inflação, o BC pode começar a atuar ativamente na liquidez do mercado financeiro: ao recomprar, em caráter temporário, títulos públicos vendidas, ele aumenta a liquidez do mercado e diminui o juro do mercado interbancário.
Quando vende os títulos, ele enxuga a liquidez e há um aumento das taxas de juros. Logo, se o juro é alto, o valor para empréstimos de dinheiro fica mais caro e, assim, há uma demanda de redução do consumo, o que impacta na aquisição de bens e serviços e resulta na queda da inflação ou na estagnação dela — objetivo principal do banco quando há uma inflação muito alta.
“A mudança da liquidez do mercado interbancário afeta a disponibilidade e o custo das operações de crédito da economia. O custo de rolagem da dívida se eleva, desestimulando o endividamento tanto para consumo quanto para investimento. A atividade econômica tende a esfriar”, explica Murilo.
Como ela é definida?
A definição feita pelo Copom, conselho formado pelo presidente do BC e por outros oito diretores do banco, é baseada, principalmente, na inflação. Além disso, a atividade econômica, de geração de empregos até a produtividade dos setores econômicos, também é levada em consideração.
Para a economista Monica de Bolle, o BC também considera choques inflacionários externos, eventos fora do país que impactam cadeias de produção e causam efeitos em produtos diversos, o que causará mudanças na economia. Ela cita, em uma análise em newsletter própria, que a política de covid zero que estacionou a produção da China e a guerra na Ucrânia, que também prejudicou importações de produtos essenciais, foram choques recentes que impactaram todo mundo — e o Brasil.
Com influências que poderão causar efeitos internos, o Banco Central deve agir para manter uma estabilidade de preços, o que ocorre pela elevação dos juros. Foi por esse motivo que a taxa Selic foi aumentada nos últimos meses, desde 2020.
Como o brasileiro sente o impacto dela?
A alta na Selic é sentida pelos brasileiros por meio do desaparecimento de vagas de trabalho no mercado, o que ocorre pelo enfraquecimento da atividade econômica e do encarecimento do acesso a crédito pelas empresas. “Vale pontuar, contudo, que o não controle da inflação também resulta em problemas relevantes para a população, principalmente para as de menor poder aquisitivo, já que normalmente apresentam relações de trabalho mais fluidas, com menor capacidade de reajuste salarial, por exemplo”, frisa Murilo Viana, especialista em finanças públicas.
No entanto, o especialista diz que o encadeamento dos efeitos da Selic alta ocorre com 6 a 9 meses.
A taxa atual está fora do comum ou é justificável?
Para a economista Monica de Bolle, os eventos dos últimos dois anos justificaram o aumento da taxa, ação que foi feita por todos os bancos centrais ao redor do mundo.
“No contexto geral, o BC não está ou não esteve errado em aumentar as taxas de juros quando se deparou, assim como os demais bancos centrais do mundo, com os choques externos inflacionários. O que é difícil é saber quando essas medidas serão revertidas e, portanto, por quanto tempo o ciclo de alta de juros deve se dar e o quão intenso ele será”, opina Monica.
No entanto, a economista pontua que é preciso questionar, sim, a alta crescente da Selic em apenas 15 meses, quando o indicador saiu de 2% ao ano para 13,75%, patamar em que está atualmente.
“Diferente do resto do mundo, nós tínhamos uma taxa de juros de 2%, baixa demais para aquele contexto inflacionário que confrontamos no início da pandemia. A pergunta deve ser feita: os juros deveriam ter ido de 2% para 13,75%? Essa é uma alta muito intensa, porque o tempo de aumento dela foi bastante curta”, declara.
Ela ainda diz que a taxa de juros real é “extraordinariamente alta e evidentemente não deixa espaço nenhum para investimento”. “Então o Brasil está hoje, sim, com o investimento estrangulado e com capacidade de crescimento estrangulada por várias razões, dentre elas os juros reais excessivamente elevados. Então existe uma questão legítima a respeito da magnitude das taxas de juro e de quando elas deveriam, e também se já existem condições, de começar a reduzi-las”, frisa.
A economista, que mora nos EUA, afirma que o debate da queda das taxas básicas de juros está sendo feito em todo o mundo, “e está sendo feito às claras, sem nenhum tipo de estresse e dogma, ao contrário do que tende a acontecer no Brasil”, diz.
Lula tem razão para reclamar da taxa?
Para Murilo Viana, Lula deve ter cautela na relação com o BC e o mercado, para que o clima de desconfiança quanto à gestão do governo do petista não seja agravado.
“O presidente da República pode ter suas convicções pessoais. Porém, como chefe do Executivo, sua fala afeta o mercado e pode levar a consequências diferentes do desejado por ele. Quando o presidente questiona sistematicamente a autoridade monetária e sua independência conferida por lei, o efeito prático é a deterioração das expectativas de juros e inflação, dificultando o trabalho do Banco Central e, portanto, atrapalhando o início de eventual redução do juros por parte da autoridade monetária”, pontua.
O especialista também explica o motivo da desconfiança do Banco Central e do mercado quanto à gestão de Lula. Além do Brasil apresentar uma relação dívida-Produto Interno Bruto (PIB) acima da média de países do mesmo patamar da República, outros dois fatores relevantes soma-se à preocupação do banco: a perspectiva de elevado déficit fiscal decorrente da aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, no final de 2022; e a “ausência de clareza sobre a nova âncora fiscal que substituirá o Teto de Gastos”.
“O receio sobre a trajetória do endividamento público, se essa será sustentável ou não, bem como o atual patamar de inflação, descolado da meta de inflação estabelecida pelo CMN, levam o Banco Central a ser mais comedido na sinalização de diminuição da taxa Selic”, resume Murilo.
Para ele, o governo “deveria sinalizar logo qual sua estratégia de nova âncora fiscal, mostrando sua consistência com a estabilização da dinâmica dívida-PIB”. “Temos que ter clara a estratégia fiscal de médio prazo, de preferência mostrando que o compromisso fiscal e social são faces de uma mesma moeda”, opina. “Esses ruídos entre governo e Banco Central definitivamente não ajudam nem o trabalho do governo federal e muito menos o do Banco Central”, acrescenta.
Monica de Bolle acredita que, apesar do Banco Central ser independente, ele não deve ficar desconectado da política fiscal estabelecida pelo governo. “Um BC quando é independente não age sozinho, não age separadamente do restante das políticas macroeconômicas. Aqui nos EUA, o FED, banco central americano, é independente, mas o presidente do FED tá toda hora conversando com a secretária do tesouro, responsável pela política fiscal. Não existe boa condução macroeconômica, sem que exista coordenação entre políticas fiscal e monetária”, aconselha.
A especialista diz que só será possível uma mudança caso o BC e o governo parem de criticar um ao outro, uma prática que “não funciona, não é bom para ninguém e não entregará bons resultados”. Ela admite que “existe um estresse legítimo” na visão dela vindo do governo devido ao “que de fato revela o BC e em particular o presidente do banco em manifestações recentes”.
“Entretanto, dado o momento extremamente delicado do Brasil em questões diversas, inclusive nas questões macroeconômicas, cabe ao governo uma comunicação um pouco mais cautelosa e delicada para não estragar uma relação que é absolutamente fundamental para o bem do país”, aponta.
“O Lula tem todo direito a fazer críticas ao BC e à condução da política monetária, mas o tom utilizado para fazer essas críticas importa. E na minha opinião o Lula, e tenho certezas que tenham razões políticas para tanto, ao meu ver, está passando do tom de uma forma que pode vir a ser prejudicial para a coordenação dessas duas políticas”, opina.
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