Com o fim do teto de gastos decretado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em vários discursos desde que assumiu, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem sinalizado que pretende apresentar um novo arcabouço fiscal na primeira metade deste ano. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, que ampliou o limite de despesas no Orçamento deste ano em R$ 168 bilhões, e, com isso, elevou o rombo fiscal do Orçamento de 2023 para R$ 231,6 bilhões, prevê a definição da nova âncora até agosto.
O mercado financeiro, que vem dando sinais de não estar em lua de mel com Lula desde a posse, aguarda ansiosamente alguma sinalização da equipe econômica sobre qual será o desenho do arcabouço fiscal que precisará ser respeitado a partir de 2024. O plano de medidas de até R$ 242,7 bilhões para reduzir o rombo fiscal anunciado por Haddad é pouco efetivo. Pelas estimativas da Instituição Fiscal Independente (IFI), por exemplo, quatro medidas são factíveis neste ano, e, juntas, poderiam ajudar a reduzir o rombo fiscal deste ano em R$ 81,3 bilhões. Isso é menos do que os R$ 131,6 bilhões a R$ 141,6 bilhões de impacto previsto pelo ministro para reduzir o rombo fiscal deste ano para algo entre R$ 90 bilhões e R$ 100 bilhões.
Não à toa, a reação do mercado financeiro é negativa toda vez que Lula vocifera em relação à independência do Banco Central e ao teto de gastos — última âncora fiscal vigente, embora tenha sofrido várias alterações pelo governo anterior, foi a medida que ajudou o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) conter o aumento da despesa e da dívida pública em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), na avaliação do economista e ex-ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega, sócio da Tendências Consultoria. "Eu diria que essa melhora que houve no campo fiscal tem pouco a ver com o governo. Ela ocorreu sobretudo em 2022, por fatores alheios à ação do governo", disse ele, citando como exemplos a alta dos preços das commodities por causa da guerra na Ucrânia, que aumentou a arrecadação. "O teto de gastos ajudou na redução da manutenção da relação entre despesa federal em relação ao PIB. Então, não há nenhum mérito do governo nisso aí, a rigor. Pelo contrário", frisou.
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Em entrevista ao Correio na semana passada, a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, contou que defende um arcabouço que tenha como foco o controle das despesas e que o ministro Hadad tem duas ou três propostas sobre a mesa e deverá se reunir com a equipe econômica sobre o assunto a partir desta semana. "Eu acho que tem que olhar para o gasto. Nós vamos olhar para o gasto público e, no momento que tiver maduro, vamos apresentar algumas pequenas ou grandes propostas para a Casa Civil, para o Ministério da Fazenda, que tem essa visão também de que tem que olhar. A Fazenda está pensando em algumas alternativas em relação ao novo arcabouço fiscal."
O modelo será definido em conjunto com os integrantes da Junta Orçamentária, composta por Tebet, Haddad, e os ministros Esther Dweck (Gestão e Inovação em Serviços Públicos) e Rui Costa (Casa Civil), de acordo com a chefe do Planejamento. A ministra vem reforçando que será uma voz divergente na equipe econômica, porque o país gasta muito e mal e, portanto, precisará cortar, inclusive subsídios. "Eu acho que não tem como. Esse é o meu papel. E vou ser a chata da história", frisou.
Apesar dos discursos de posse dos ministros de Lula de que haverá responsabilidade fiscal junto com responsabilidade social, como a equipe econômica tem mais expansionistas, como Haddad e Esther, do que fiscalistas, como Tebet, muitos se preocupam com uma tentativa de "inventar a roda", buscando um arcabouço que não seja crível. Um aperfeiçoamento do teto de gastos em vez de uma nova regra tem sido uma das principais alternativas defendidas pelos especialistas.
Além de Mailson e Tebet, o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles é outro defensor de que o novo arcabouço fiscal seja focado na despesa, em vez de dívida ou PIB, porque eles fogem do controle. Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, também vê com desconfiança o uso da dívida pública como substituto do teto de gastos. "Nesse caso, vai ser o início do desmonte do governo", disse. Para ele, "a melhor sinalização de Haddad" foi colocar o economista Bernard Appy como secretário especial da Reforma Tributária, o que vai ajudar o governo na tarefa de fazer um ajuste fiscal, que será inevitável, por meio de ampla reforma no sistema tributário. Lula e integrantes do governo, inclusive, defendem aumento de impostos para os mais ricos.
Simão Davi Silber, professor da Universidade de São Paulo (USP), engrossou o coro nas críticas a um arcabouço sem controle no aumento dos gastos, pois, neste ano não haverá excesso de arrecadação como em 2022. O colchão de liquidez do Tesouro Nacional, com R$ 1,1 trilhão no fim de 2022, pode não ser suficiente para fazer a gestão da dívida pública se não houver credibilidade fiscal do governo junto ao mercado. Apenas o novo Bolsa Família vai custar R$ 600 bilhões em todo o mandato, logo, essa reserva poderá ser queimada rapidamente se o Tesouro tiver dificuldade para rolar essa dívida. "Não podemos nos esquecer que a dívida pública bruta chegou a quase 90% do PIB e só caiu com a ajuda da inflação, que aumentou o denominador do indicador, o PIB nominal. E, se o governo não respeitar as regras fiscais, na melhor das hipóteses, as despesas ficam incontroláveis e a dívida volta para 90% do PIB e, na pior, para 100% do PIB. O mercado não vai aceitar uma dívida nesse patamar. Vamos ter dólar mais alto, juros mais elevados e mais inflação", alertou.
Silber lembrou que o Brasil não tem a mesma credibilidade de Estados Unidos e Japão para ter uma dívida acima de 100% do PIB, mesmo com a dívida sendo majoritariamente interna. "O novo governo não combinou isso com o mercado e ele não vai aceitar. Portanto, não haverá gol, e a dívida pode explodir", afirmou ele, fazendo analogia com a famosa de Garrincha ao técnico antes do jogo não combinado com a Rússia. Pelas estimativas da Tendências, a dívida pública bruta pode ultrapassar 100% do PIB, em 2026, considerando o cenário pessimista.
Além de defender um arcabouço fiscal focado no controle das despesas, Evandro Buccini, diretor da gestora de investimentos Rio Bravo, reforçou que o combate à pobreza, uma das prioridades de Lula, estará em risco se não houver uma boa âncora fiscal. "Esse é o grande desafio do novo governo, porque, sem um equilíbrio fiscal, o crescimento econômico vai para baixo e isso bate no mercado de trabalho e na renda, que são condições para as famílias mais pobres melhorarem de vida", orientou o economista.
Consenso por regra factível
O consenso entre analistas é de que será preciso um arcabouço com metas críveis para o país recuperar a credibilidade da âncora fiscal e, assim, permitir ao governo conseguir fazer um ajuste fiscal mais gradual.
Evandro Buccini, diretor da Rio Bravo, ressaltou que o mercado não está achando ruim que o governo gaste mais a curto prazo para socorrer os mais necessitados e adotar medidas mais urgentes. Contudo, é preciso que "a perspectiva futura seja de melhor responsabilidade fiscal". "Se a nova regra fiscal for ruim, será preciso cortar gastos ou aumentar imposto a curto prazo, o que terá consequências políticas ao novo governo", pontuou.
Na avaliação do economista e professor da Universidade de Brasília (UnB) José Luis Oreiro, que integrou o grupo de transição do novo governo, é possível fazer um novo arcabouço por meio do da regra de superavit estrutural — cálculo que exclui fatores transitórios do resultado fiscal, e, segundo ele, pode garantir a redução da relação dívida-Produto Interno Bruto (PIB), a médio e longo prazos. "No superavit primário estrutural, o excesso de superavit primário vai ser usado, em parte, para abater dívida e outra parte para um fundo de estabilização, que pode ser usado em momentos de recessão para investimentos em infraestrutura", destacou ele, que é um grande crítico do teto de gastos e da regra de superavit primário.
A proposta defendida por Oreiro, segundo ele, seria calibrada para que a dívida pública caísse em uma trajetória descendente de médio e longo prazos. "É a melhor política fiscal possível, usada em países da União Europeia e no Chile. Não é preciso inventar a roda. E, toda vez que o Brasil tenta ser criativo, cria uma regra que não para em pé", pontuou.
No apagar das luzes do governo anterior, técnicos do Ministério da Economia divulgaram duas propostas de arcabouço fiscal que podem ser analisadas. A primeira, do Tesouro Nacional, sugere a vinculação do crescimento das despesas ao tamanho da dívida pública no lugar do teto de gastos e propõe uma reformulação da regra de meta de resultado primário. A segunda, da Secretaria de Política Econômica (SPE), prevê o aprimoramento do teto de gastos, por meio de uma regra que inclui a evolução do PIB, condicionada ao tamanho da dívida pública. A conferir o que virá nos próximos meses.
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