A noite de domingo de 15 de agosto de 1971, trouxe um anúncio completamente inesperado.
O então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, interrompeu a programação dos canais de televisão no horário de maior audiência para apresentar uma mensagem que mudaria para sempre a economia mundial:
"Ordenei ao secretário [do Tesouro, John] Connally a suspensão temporária da conversibilidade do dólar por ouro."
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Assim, o presidente colocava fim a uma das bases da economia internacional do pós-guerra.
A medida foi anunciada para 46 milhões de telespectadores nos Estados Unidos, mas logo cruzou as fronteiras do país — especialmente entre seus aliados, causando enorme agitação ao colocar sua segurança financeira à prova de forma totalmente inesperada.
"A Europa e o Japão reagiram com ansiedade e confusão às medidas econômicas radicais do presidente Nixon", conforme resumiu na época o jornal The New York Times, destacando que os centros econômicos capitalistas mais importantes, com exceção de Tóquio, no Japão, haviam suspendido as transações oficiais de suas divisas.
As bolsas de valores derreteram. A bolsa de Tóquio foi a que mais sofreu.
A controversa medida anunciada por Nixon fazia parte de um pacote de medidas econômicas mais amplo, que incluiu a cobrança de um imposto de 10% sobre as importações, assim como a introdução de controles temporários de preços e salários para controlar a inflação. O pacote ficou conhecido como "choque de Nixon".
"Essas políticas foram projetadas para evitar uma corrida às reservas de ouro dos Estados Unidos e reverter a deterioração da balança de pagamentos do país, ao fazer com que outros países reavaliassem suas moedas, evitando as pressões protecionistas do Congresso", escreveu o economista americano Douglas A. Irwin em um artigo acadêmico publicado em 2012, analisando o impacto do pacote.
Mas a que se devia essa comoção? Basicamente, as medidas eliminaram um dos fundamentos da economia capitalista global desde o fim da Segunda Guerra Mundial: a livre conversibilidade do dólar em ouro.
Para entender melhor a situação, é preciso voltar ao ano de 1944.
Bretton Woods e a garantia do ouro
Em julho de 1944, enquanto a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim, representantes de 44 países ou governos aliados participaram de uma conferência em Bretton Woods, em New Hampshire, nos EUA. Nela, foram definidas as bases do que seria a reconstrução da economia mundial do pós-guerra.
Os participantes aprovaram um projeto de criação posterior do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) — que depois faria parte do que hoje conhecemos como Banco Mundial.
Comércio e paz duradoura exigiam estabilidade financeira. Era necessário ter uma moeda na qual todos confiassem. Por isso, no sistema de Bretton Woods, ficou decidido que as moedas estrangeiras poderiam ser convertidas em dólares a taxas fixas e, por sua vez, seria garantida a conversão do dólar americano em ouro à taxa de US$ 35 por onça-troy do metal.
Ou seja, ter dólares seria o mesmo que ter ouro. Por isso, o mundo todo passou a usar o dólar nas suas relações comerciais, e esse comércio impulsionou a recuperação econômica da Europa e do Japão após a guerra.
No entanto, no início da década de 1970, a Europa e o Japão viviam seu auge econômico no pós-guerra, enquanto os Estados Unidos enfrentavam dificuldades.
A guerra do Vietnã (travada entre 1955 e 1975) era extremamente cara, e a inflação aumentava. O acordo do padrão-ouro era bom para o resto do mundo, mas prejudicava a economia americana, que avançava perigosamente para o colapso.
A quantidade de dólares fora dos Estados Unidos somava quase US$ 50 bilhões já no final da década de 1960. Este valor superava significativamente as reservas de ouro do país, que eram de cerca de US$ 10 bilhões.
"Simplesmente não havia como os Estados Unidos pudessem, algum dia, cumprir com sua obrigação de trocar os dólares por ouro, se os bancos centrais de outros países começassem a pedir ouro em troca de todas as suas reservas em dólares", afirma Irwin.
Paralelamente, os americanos vinham sofrendo dificuldades econômicas internas, o que poderia custar a Nixon a eleição presidencial de 1972. E tudo isso ocorria em plena Guerra Fria, de forma que o presidente americano não podia permitir que sua economia começasse a cambalear.
"O governo dos Estados Unidos enfrentava uma situação parecida com uma criança que tinha um par de sapatos maravilhosos, mas que ficaram pequenos", explicou a jornalista britânica Gillian Tett, editora-chefe de Estados Unidos do jornal Financial Times, ao programa de rádio The History Hour, do Serviço Mundial da BBC.
"Economias como a americana haviam crescido rapidamente, ficando dessincronizadas, e a política monetária era muito rígida, devido à vinculação com o padrão-ouro. Tudo isso estava criando uma enorme quantidade de conflitos", afirma Tett.
Medida drástica
O governo Nixon havia começado a avaliar suas opções meses antes de tomar a decisão.
Sua equipe econômica incluía o ex-governador do Texas e secretário do Tesouro John Connally, além de Paul Volcker, alto funcionário do Tesouro que, anos depois, seria nomeado chefe do Federal Reserve (o Banco Central dos Estados Unidos).
Volcker (1927-2019) era um homem muito alto — tinha mais de dois metros de altura — e estava bastante preocupado em manter a estabilidade do sistema internacional. Já Connally (1917-1993) era um nacionalista que não se importava em abalar o consenso global, se isso ajudasse os Estados Unidos.
Nixon costumava prestar mais atenção a Connally, que ele considerava um possível sucessor político na Casa Branca.
"Nixon foi conquistado pela posição dura de Connally, sua espécie de arrogância texana e pelo fato de que ele era extremamente carismático", contou à BBC Bob Hormats, que havia ingressado nessa equipe econômica muito jovem como assessor de Henry Kissinger, então responsável pela segurança nacional na Casa Branca.
Em 13 de julho de 1971, depois de meses de discussões, a equipe de assessores viajou secretamente para Camp David, a casa de campo da presidência americana, para concluir a elaboração das medidas a serem anunciadas por Nixon.
Para evitar uma guerra comercial
Hormats conta que, depois de ouvir o anúncio de Nixon, perguntou se outros governos haviam sido avisados com antecedência, mas ninguém havia feito isso porque o governo queria que fosse uma surpresa.
"Então pensei, bem, alguém tem que fazer isso. Eu disse que escreveria um telegrama do presidente aos seus homólogos no exterior e comecei a receber ligações telefônicas frenéticas dos ministros da Economia de diversos países", relembra.
"A principal reação era: 'O que aconteceu? Conte mais, precisamos de mais detalhes. Isso vai ter um grande efeito por aqui. Precisamos saber. Por que os americanos não nos avisaram antes?' E precisei responder todas essas perguntas da forma mais diplomática", diz Hormats.
As medidas impostas significavam não apenas que os portadores de dólares americanos já não contavam com a garantia de poder trocá-los pela taxa fixa anteriormente existente. Também indicavam que suas exportações para os Estados Unidos ficariam mais caras e perderiam competitividade, devido ao imposto anunciado de 10%.
Nixon afirmou que essa tarifa adicional seria suspensa quando terminasse o "tratamento injusto com relação ao dólar", o que o jornal francês Le Monde classificou como "chantagem".
A França e o Japão resistiam a permitir a "flutuação" das suas moedas em relação ao dólar, enquanto as ações das empresas voltadas à exportação, como a Volkswagen, da Alemanha Ocidental — que vendia um terço da sua produção para os Estados Unidos —, viam suas ações na bolsa caírem.
Nos meses que se seguiram, Hormats, Volcker e Kissinger tentaram desesperadamente nos bastidores reconstruir as comprometidas relações entre os Estados Unidos e seus aliados, negociando um novo sistema financeiro.
"Conversei com Volcker, e ele disse: 'Bem, entendo que os japoneses serão particularmente afetados, então irei pessoalmente ao Japão'", relembra Hormats.
"Eu respondi: 'Certamente vão saber que você está lá'. E ele disse: 'Não, vou usar um guarda-chuva'."
"E respondi: 'Mas você tem dois metros de altura, não acho que vá conseguir passar despercebido por muito tempo'. Mas o fato é que ele foi e conseguiu não ser descoberto até conceder uma entrevista coletiva com o ministro das Finanças do Japão", contou.
Depois de meses de negociação, os Estados Unidos e seus aliados finalmente anunciaram um acordo em dezembro de 1971 para a criação de um novo sistema monetário mais equitativo.
"O que ocorreu aqui é que todo o mundo livre saiu ganhando", afirmou Nixon após a assinatura do acordo no Instituto Smithsonian em Washington.
Segundo o acordo, o dólar foi desvalorizado em 8,5% em relação ao ouro, enquanto as moedas de outros 10 aliados dos Estados Unidos foram valorizadas em relação à moeda americana. Mas durou apenas 15 meses até entrar em colapso. Em 1973, a maior parte daqueles países já permitia a flutuação da sua moeda em relação ao dólar.
Até hoje se discute o sucesso do "choque de Nixon". A medida salvou os Estados Unidos de uma crise, mas aumentou a instabilidade da economia mundial. E não conseguiu evitar que a inflação continuasse a assolar o Ocidente na década de 1970.
Mas uma coisa é certa: o "choque de Nixon" foi o marco de uma nova ordem mundial. Os Estados Unidos deixaram de carregar o Ocidente nas costas.
* Esta reportagem foi baseada no episódio "Inflation and the Cost of Living" ("A inflação e o custo de vida", em tradução livre), da série de programas de rádio The History Hour, do Serviço Mundial da BBC. Ouça o episódio original (em inglês) no site BBC Sounds.
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