Luiz Inácio Lula da Silva enfrentará desafios redobrados no seu terceiro mandato como presidente da República. No primeiro discurso como presidente eleito, ontem, Lula afirmou que sua prioridade será acabar com a fome no Brasil. "O Brasil é minha causa, o povo é a minha causa, e combater a miséria é a razão pela qual eu vou viver até o fim da minha vida", disse. Sem dar pistas sobre quem estará à frente da equipe econômica do novo governo, o petista foi enfático ao afirmar que vai fazer "a roda da economia voltar a girar". Mas, para cumprir promessas como retomar o aumento real do salário mínimo, recuperar o programa Minha Casa Minha Vida, manter o auxílio de R$ 600 para os mais vulneráveis, conceder isenção do Imposto de Renda quem ganha até R$ 5 mil, e, ainda, criar um programa para os endividados, é preciso arrumar fontes de receita, como prevê a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Essa tarefa não será fácil, especialmente porque o atual governo deixará como herança um rombo fiscal gigantesco, devido à série de benefícios adotados nos últimos meses para pavimentar a reeleição de Bolsonaro, que acabou derrotado. As estimativas desse buraco fiscal, entre analistas do mercado, variam de R$ 150 bilhões a R$ 430 bilhões. No discurso, Lula disse que não tomará decisões que impactam a vida dos brasileiros "em sigilo", e que pretende restabelecer o diálogo com a sociedade e os empresários, recriando o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, conhecido como Conselhão, extinto no governo Bolsonaro.
Para mostrar que não partirá para aventuras populistas, sem compromisso com a responsabilidade fiscal, Lula, segundo analistas, precisará se distanciar de economistas da esquerda tradicional e escolher, para o comando da equipe econômica, alguém com perfil de centro, que possa recuperar a capacidade de controlar as despesas, depois que o atual governo destruiu a última âncora fiscal em vigor: o teto de gastos.
Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, avaliou que a falta de informações sobre os futuros integrantes da equipe econômica, no discurso da vitória de Lula, era esperada. "Ele não deu nenhum sinal. Colocou o que se imaginava de salário mínimo, Minha Casa Minha Vida e esse programa de ajuda a quem está endividado. O pronunciamento inicial foi mais de conciliação, porque precisava ser mais nesse tom do que falar de ajuste mesmo, e ele falou o essencial", afirmou. Segundo Vale, o próximo governo terá que lidar com um rombo nas contas acima de R$ 100 bilhões e precisará de um waiver (licença para aumento de gastos) em 2023 para conseguir governar e aprovar um novo arcabouço fiscal.
O ex-ministro da Fazenda e ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles, responsável pela implementação do teto de gastos, em 2016, e cotado para compor a equipe econômica de Lula, aposta na reforma administrativa como prioritária para abrir espaço fiscal para as medidas que o presidente eleito defende. "A prioridade no início do governo seria criar fontes de receita para os programas sociais e os investimentos em infraestrutura. Nesse sentido, a reforma administrativa seria fundamental, porque eliminaria despesas desnecessárias e criaria condições de estabilidade e de responsabilidade fiscal para que se possa ter investimentos em toda a economia, criando emprego e renda em toda a sociedade brasileira. Esse é o caminho", afirmou Meirelles ao Correio.
Meirelles, que ocupou recentemente a secretária de Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo, reconheceu a necessidade de uma discussão sobre novas regras fiscais, e também defendeu um waiver de gastos em 2023, mas com a manutenção de um limite para as despesas. "A minha sugestão é que se faça uma excepcionalidade (para as despesas) e a reforma administrativa, em 2023, para criar espaço dentro do teto para investimentos em infraestrutura. Isso é muito importante para discutir, com calma, se é necessária uma reformulação das regras fiscais ou um ajuste no teto", acrescentou.
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Modelo paulista
Meirelles descartou a proposta de reforma administrativa da equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, a PEC 32/2020. A matéria está empacada há dois anos no Congresso — e é combatida ferrenhamente pelos servidores públicos, uma das bases políticas do PT. Segundo ele, será preciso fazer uma reforma como a que ele conduziu no estado de São Paulo. "Foi um modelo muito bem sucedido, porque o Orçamento estava justo e, depois das mudanças, entrou um saldo em caixa de mais de R$ 50 bilhões. E isso foi resultado de uma reforma bem feita", afirmou, sem fazer estimativas do impacto de uma medida parecida no governo federal. "É preciso analisar as contas do governo e verificar o que pode ser feito. Ainda é prematuro fazer estimativas de números."
O ex-ministro também defendeu uma reforma tributária ampla e não as propostas enviadas por Guedes ao Congresso, com mudanças no Imposto de Renda, que está parada no Senado. Questionado se já conversou com Lula, Meirelles afirmou que ainda não é o momento, porque é necessário, agora, um intervalo para a tomada de decisões. "É preciso acalmar, ver as prioridades na Saúde, na Educação, na Segurança e, a partir daí, começar as discussões de política econômica. Mas tudo no tempo certo", disse.
Analistas ouvidos pelo Correio observam que, para conseguir governabilidade, Lula precisará negociar tanto com congressistas que participaram da frente ampla que o elegeu quanto com o Centrão. Na avaliação do cientista político e especialista em relações internacionais Wagner Parente, CEO da BMJ Consultores Associados, a primeira batalha de Lula será reconquistar o orçamento público. "Ela começará mesmo antes de assumir em janeiro. É bem provável que haja a tentativa de tornar o orçamento secreto impositivo por meio de uma emenda constitucional. Caso essa manobra seja bem-sucedida, Lula assumirá com menos força para negociar com o Congresso", destacou.
O segundo desafio será manter unida a frente ampla que o elegeu. "O Partido dos Trabalhadores não é conhecido por dividir o poder. Caso os cargos mais importantes sejam ocupados com nomes como Fernando Haddad, Aloizio Mercadante e Gleisi Hoffmann, é bem provável que a base se esfacela antes da posse", alertou. Por fim, de acordo com Parente, será muito importante buscar o retorno da tranquilidade institucional, em especial na relação com o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional — "fundamental para prover a estabilidade que atrai investimentos, emprego e renda".
O cientista político Christopher Garman, diretor para as Américas do Eurasia Group, destacou que o novo governo deverá começar com um tom moderado. "Lula vai precisar governar com o centro político e a indicação dele nessa direção foi a escolha de Geraldo Alckmin como vice na chapa. Acredito que ele terá um papel importante na atuação do governo, inclusive, para escolher os integrantes da equipe", pontuou.
Turbulência
Na avaliação de Garman, o cenário econômico será mais turbulento em 2023, com desaceleração das economias global e brasileira. "O ambiente será difícil para Lula, porque a economia vai desacelerar e o cenário político será adverso. Vemos que a lua de mel dos presidentes de esquerda eleitos na América Latina com a opinião pública foi curta e a aprovação, agora, está baixa", salientou. Para ele, o desafio maior do novo governo será conciliar a demanda de mais gastos sem gerar uma crise de confiança. "Será preciso fazer a economia crescer, de modo a ampliar o gasto público sem aumentar a carga tributária. Lula estará em uma linha tênue no início de governo."
Ele lembrou que, entre as apostas para a equipe econômica, além de Meirelles, está o economista Persio Arida, um dos pais do Plano Real. "Não me espantaria com esses nomes, acho que isso ainda está em aberto. Aposto mais em alguém com um perfil mais político", completou.
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