O mercado está atento a um tipo de consumidor que tem se tornado cada vez mais frequente: as mulheres que viajam sozinhas. De acordo com a última pesquisa feita pelo Booking.com, site internacional de reserva de acomodações, no fim de 2020, 39% das viajantes brasileiras afirmaram que planejavam fazer uma viagem solo no futuro. A pesquisa ouviu 20.934 pessoas de 28 países.
Em 2021, a quantidade de mulheres que compraram passagens aéreas para viajar sozinhas na MaxMilhas representou cerca de 19% do total de bilhetes vendidos. No período específico do carnaval deste ano, esse perfil correspondeu, aproximadamente, a 22,3% das vendas.
A empresa também fez um levantamento sobre a proporção de mulheres no total de passagens vendidas para cada destino. Segundo a plataforma, a maior parte das passagens para São Paulo e Rio de Janeiro são buscadas por elas, e mais de 64% dos bilhetes eram de mulheres viajando sozinhas.
Pesquisas sobre o tema são pouco atualizadas, mas é perceptível que, de uns anos para cá, o aumento desse público foi significativo e abriu um novo nicho de mercado: o turismo voltado para mulheres. Agências de viagem, grupos em redes sociais e empresas estão focadas cada vez mais em mulheres que procuram experiências seguras e enriquecedoras sozinhas.
A empresa Sisterwave, especializada nesse tipo de atendimento, ganhou um prêmio em 2021, na terceira competição global de startups de turismo, organizada pela Organização Mundial do Turismo (OMT). Ela foi idealizada por Jussara Pellicano Botelho, em Brasília, após uma viagem ao Butão, na Ásia. Segundo ela, a viagem era a realização de um sonho.
"Convidei uma amiga para ir comigo, e durante a viagem, em 2015, passamos pela Tailândia, onde ficamos mais tempo. Depois que ela foi embora, fiquei totalmente sozinha", contou. "Foi muito desafiador, mas ainda mais transformador. Conheci muitas pessoas que eram nômades digitais e, como designer, percebi que poderia fazer o mesmo que eles."
No contexto corporativo, contribui para esse crescimento a quantidade de profissionais que trabalham em regime remoto. De acordo com Jussara Botelho, houve um planejamento de um ano. "Decidi, então, conhecer todos os países da América do Sul. Uma amiga me acompanhou em alguns deles, e conhecemos várias mulheres que sentiam falta de uma plataforma que desse apoio a elas em viagens."
Oportunidade
Professora de yoga e mochileira, a advogada catarinense Ana Caroline Cunha, 28 anos, começou a tomar gosto pelas viagens solo depois de fazer o primeiro intercâmbio, em 2012. "Foi quase um processo de desmame. No intercâmbio, eu tinha toda uma assessoria e um suporte. Depois disso, fiz um mochilão em um grupo em que era a única brasileira, até que, finalmente, chegou minha oportunidade. Em 2019, coloquei uma mochila nas costas e fui para a Patagônia, pela primeira vez totalmente sozinha", contou.
Depois de passar por inúmeros lugares, em março deste ano, ela escolheu voltar ao pico que marcou o início da sua busca pela liberdade, e completar o Circuito W, localizado no Parque Nacional Torres del Paine, no Chile. Foram mais de 90 quilômetros percorridos em cinco dias de caminhada, enfrentando o peso da mochila, a neve e todos os seus medos. "Viajar sozinha é sentir que realmente posso tudo e não dependo de ninguém. É sentir que sou capaz de fazer absolutamente qualquer coisa, realizar qualquer sonho."
Ana Caroline começou a compartilhar suas experiências em fotos e textos na sua página no Instagram (@anavoando), e a principal dica da mochileira é exatamente conversar com outras mulheres. "Muitas vezes, a gente fica esperando companhia e acaba deixando de fazer algo de que gostaria muito. Então, rodear-se de inspiração de outras mulheres que estão fazendo o mesmo torna tudo possível", disse.
Há três anos viajando sozinha, a administradora Jennifer Oliveira, 24, fez mochilão pela Patagônia argentina e afirmou que essa foi sua experiência mais transformadora até hoje. "Foi desafiador estar em uma cultura com uma língua que eu não falava. Aprendi espanhol no decorrer da viagem. Fiz a trilha sozinha na Patagônia no outono, com seus variados climas num mesmo dia: sol, vento e neve. Além disso, não consegui sacar dinheiro e fui acolhida na casa de uma nativa, totalmente desconhecida até então."
Autoconhecimento e liberdade são os dois motivos que fazem Jennifer sempre viajar sozinha. "Quando você está sozinha, constrói uma relação muito íntima consigo mesma, de descobertas sobre seu próprio eu. E também vive a liberdade em todos os aspectos, ir e vir quando e como quiser, escolher seus lugares favoritos sem depender da conciliação de opiniões, mudar o roteiro sem depender da aprovação de outra pessoa. Viajar solo é um caminho sem volta, você se encontra e se reconhece no meio desse percurso e quer ter sempre esse sentimento de preenchimento como um combustível de vida", explicou.
Saiba Mais
Segurança
A advogada carioca Daiana Melo, de 29 anos, viaja sozinha há quatro anos e sente a necessidade de ter cuidado redobrado, justamente por ser mulher. "Recentemente, viajei um ano e meio direto, totalmente sozinha. O primeiro lugar a que fui foi Ubatuba (SP), onde permaneci por um mês e meio. De lá, fui para outros lugares no Brasil, ficando, em média, três meses em cada estado. Sem dúvida, precisei me planejar muito mais por ser mulher. Ao mesmo tempo que viajar sozinha te torna mais acessível e facilita conexões, o que é incrível, também te torna mais vulnerável", alertou.
O simples fato de pegar carona, prática bastante comum entre mochileiros, já fez com que Daiana tivesse outra percepção. "Conheci muitas meninas, principalmente estrangeiras, que estavam viajando com esse método. Na Argentina, isso é muito comum, aqui já temos um entendimento diferente e vejo as brasileiras mais cautelosas. Uma viajante mulher está exposta a riscos, como violência sexual, infelizmente, por causa do machismo", disse a advogada.
O International Women's Travel Center (IWTC), entidade que se dedica a auxiliar mulheres viajantes a realizarem jornadas seguras pelo mundo, produz uma lista de destinos considerados mais perigosos para as turistas. Além de países do Oriente Médio, culturalmente conhecidos pela desigualdade entre homens e mulheres, a entidade considera que, na Índia, nenhuma região é segura o suficiente para as turistas. "Estupro é um problema epidêmico tanto para estrangeiras quanto para as mulheres locais", observa relatório da entidade.
A professora da Universidade de Brasília (UnB) Kerlei Sonaglio, especialista em turismo empreendedor e pesquisadora de viagem e gênero, observa uma certa dificuldade na escolha dos destinos pelo fator segurança, que é o principal obstáculo para mulheres que desejam viajar sozinhas. "Esse é sempre destacado nas pesquisas como fator impeditivo, muitas vezes, das viagens. Sobretudo, se for para destinos culturalmente muito distintos, onde a mulher possui uma posição social desvantajosa em relação ao homem", afirmou.
A especialista usa como exemplo a questão de transporte, hospedagem e visitação de atrativos turísticos na Europa. "Lá, você tem deslocamento de trens que facilitam e dão mais segurança às mulheres do que viajar de ônibus, como é comum no Brasil. Aqui, além disso, o mau estado de conservação das estradas é uma dificuldade a mais para que as mulheres viajem de carro sozinhas".
"Na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá, as mulheres iniciaram esse processo solo antes do que no Brasil", observou a pesquisadora. "O crescimento desse tipo de viagem tem muito a ver com segurança e com a estrutura turística disponível para as mulheres."