Entrevista | MONICA DE BOLLE | economista e escritora

"Mundo caminha para um ciclo estagflacionário", diz Monica de Bolle

Especialista alerta que o crescimento atual do país é temporário e artificial, pois o Brasil não tem dinamismo na economia

Rosana Hessel
postado em 12/09/2022 03:55
 (crédito: Arquivo pessoal)
(crédito: Arquivo pessoal)

Pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics (PIIE), conceituado think tank norte-americano, em Washington, a economista e escritora Monica de Bolle considera crítico o quadro da economia brasileira e alerta que o Brasil não está imune ao processo de estagflação em curso nas maiores economias do planeta.

Estagflação é o pior dos mundos em termos econômicos: não há crescimento, os preços continuam subindo e o desemprego aumenta. O momento atual no país, de um pouco de crescimento e de inflação perdendo força — que vem sendo utilizado na campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL) — é temporário. A especialista ressalta que o país está em um timing diferente do resto do mundo. "O descolamento é temporário. Ele nunca é permanente, porque o Brasil não está em Marte", resume.

A analista prevê que, ainda no começo de 2023, o país vai mergulhar no processo de estagflação global e os efeitos por aqui podem ser muito piores, porque a economia não é dinâmica, além de estar desorganizada. Monica analisa que, em grande parte, esse desarranjo é culpa do atual governo que, para vencer as eleições a qualquer custo, está criando bombas fiscais insustentáveis. "O Brasil está crescendo artificialmente. É como se fosse um paciente sobrevivendo à base de ventilação, cheio de tubo", ressalta. Por isso, o discurso otimista do governo é "de palanque".

A seguir, os principais trechos da entrevista de Monica de Bolle concedida ao Correio:

Monica de Bolle, economista e escritora - Senior fellow do Peterson Institute for International Economics
Monica de Bolle, economista e escritora - Senior fellow do Peterson Institute for International Economics (foto: Arquivo pessoal)

A economia internacional está com um cenário de inflação elevada e desaceleração. Como a senhora avalia a conjuntura?

Está muito complicada, porque há um choque de oferta no mundo de extrema relevância, que é a guerra na Ucrânia e a resposta dos países em relação ao petróleo e ao gás natural russo. O momento é complicado para a Europa em termos de crescimento e de inflação, por conta do que está acontecendo. Antes da guerra na Ucrânia, já havia vários outros choques temporários de oferta relacionados com a pandemia. Mas, esse sim, é grande e permanente. Eu diria que é equiparável, pelo menos, ao primeiro choque do petróleo nos anos 1970, em termos de impacto no mundo. E ainda tem outras sequelas e outros choques acontecendo em parte relevante da economia mundial. A China, por exemplo, com a política de covid zero, com os lockdowns, proporciona choques de oferta junto à guerra. Para a economia mundial, esse cenário é meio estagflacionário. Você reduz o crescimento e tem que conviver com inflação mais elevada, que não responde muito à política monetária tradicional, porque é um choque de oferta. Os bancos centrais ficam numa espécie de sinuca de bico, porque eles vão elevar as taxas de juros, sim, pois existem efeitos de segunda ordem que precisam ser contidos, para não enraizar a inflação.

Mas a senhora acha que esse problema tende a durar enquanto houver a guerra na Ucrânia?

Acaba indo além da guerra, porque suponhamos que nos próximos meses, mesmo se a Ucrânia ganhar a guerra, ganha, entre aspas, tendo perdido, porque boa parte do país foi destruída. E, por outro lado, a Rússia continua sendo pária internacional. Esse quadro de aumento dos preços de energia continuará a valer, não desaparece de uma hora para outra só porque a guerra acabou. Portanto, haverá a convivência prolongada com um cenário meio estagflacionário para o mundo. Esse é o pior dos mundos em termos políticos e de política econômica, porque não tem muito bem como se responder.

Esse problema pode se estender por 2023 e 2024? Como o mundo sairá desse cenário?

Certamente se estende por 2023 e pode se estender por 2024. É difícil de dizer, porque depende de como os países vão reagir e se haverá mecanismos de compensação via suprimentos de energia renovável. Mas muito provavelmente, você ainda tem alguma estagflação em 2024. É, sim, um cenário longo.

Aqui no Brasil o governo fala que o país está decolando e descolado do mundo. Não é um tanto contraditório?

O Brasil, no momento, está crescendo. Mas é um caso à parte, porque está em um ciclo eleitoral e houve essas tentativas — não tenho outra palavra — de comprar os eleitores. Esses benefícios acabam sendo um estímulo de curto prazo para a economia. Nada disso é sustentável. No fim das contas, você consegue isolar o Brasil por alguns meses, mas não para sempre.

Qual custo podemos esperar das consequências desse pacote de medidas no futuro?

Isso tem um custo alto. O ciclo estagflacionário que está acontecendo agora no mundo ainda não ocorre no Brasil. Essa falta de sincronia entre o Brasil e o ciclo da economia global como um todo é normal. As coisas, na economia, nunca estão em sincronia perfeita. Vai afetar o Brasil de uma forma muito mais complicada. É difícil para todos, até quando há espaço fiscal e dinamismo econômico necessários, como é o caso dos Estados Unidos. A economia norte-americana é dinâmica e não tem o problema energético da Europa. No Brasil, não é assim, não é uma economia com dinamismo e já não era antes do Bolsonaro. É um país que tem uma dependência muito grande da economia global, de modo geral, e isso é algo que tem repercussões positivas e negativas. O Brasil também atravessará uma situação de estagflação. Se o Fed (Federal Reserve, o banco central dos EUA) tem dificuldade para lidar com o cenário estagflacionário, imagina o Banco Central brasileiro.

Na época da Dilma, o cenário era parecido e o país tinha risco de entrar no processo de dominância fiscal. Os juros estão quase no mesmo patamar daquele período. Esse cenário é possível, agora, depois de tantas medidas fiscais e promessas do governo?

Claro que pode, porque tem muita coisa fora do lugar. A economia brasileira está completamente desorganizada graças ao Paulo Guedes. Esse quadro pode, num cenário estagflacionário, acabar resultando em coisas deletérias. O que me preocupa mais é o Brasil não ter como articular uma política econômica nesse cenário global, porque a política monetária tem seus limites em termos de contenção inflacionária. É muito complicado conseguir ter um conjunto de políticas racionais e que sejam eficazes nesse contexto. No governo Dilma Rousseff (PT), também houve um choque externo importante, com um quadro da Europa em crise. Existem paralelos, mas tem uma diferença fundamental, que é a polarização política atual. Nesse cenário, a estagflação será um problema grave, não só para formuladores de política econômica, mas para os sistemas políticos. No cenário de estagflação, a política é capaz de fazer muito pouco. E isso, em um lugar como o Brasil, tende a ser ainda pior.

Na campanha, todos os candidatos falam sobre a necessidade de um novo arcabouço fiscal. O teto de gastos está no chão. O Banco Central não vai conseguir baixar os juros tão cedo. E que cenário será esse?

O teto de gastos já caiu e sabemos disso há algum tempo, era inevitável. Dado o volume de herança na área fiscal, não tem espaço para uma regra completamente rígida. O principal problema foi a maneira como ele foi implementado no Brasil, com rigidez extrema, que ia implodir. O teto perdeu credibilidade no momento em que o desenho dele ficou ruim. Agora não dá para colocar no lugar do teto um outro teto. Em termos de regras fiscais, o país precisa ter certo dinamismo, porque as coisas mudam e o arcabouço fiscal tem que acompanhar. O que parece dar certo, em termos de experiência internacional, são regras mais flexíveis e que tenham compatibilidade com ciclo econômico pelo qual o país está passando.

O atual governo teria credibilidade para mudar esse arcabouço?

Nem o atual governo, nem qualquer outro. A sociedade brasileira não está mais disposta a tolerar nada. Fica difícil você ver, a curto prazo, alguém propondo corte e controle de gastos. Por outro lado, você tem um problema imenso dentro do Congresso Nacional. O Congresso que vai sair das eleições deste ano será mais ou menos o mesmo. É um parlamento que está feliz em ficar recebendo dinheiro do Bolsonaro, e vai exigir isso de qualquer outro presidente. Isso também não é sustentável. Eu não quero soar apocalíptica, mas acho que, se a gente pensa, hoje, que o país está ingovernável, a tendência é que fique mais ainda, seja quem for que ganhe as eleições.

Olhando para as propostas de governo dos candidatos à Presidência, tem alguma solução?

Ninguém propõe solução, esse é o principal problema. Os programas de governo sempre tendem a ignorar a economia externa e como isso vai impactar o Brasil. Nenhum plano de governo faz isso com esse tipo de lente. Os economistas brasileiros que estão eternamente no Brasil desde a década de 1990 não fazem parte do debate internacional. Estão completamente por fora. Todos os programas de governo têm problemas graves. Alguns têm uma ou outra proposta exequível, mas nenhum deles vai resolver a magnitude dos problemas que o Brasil vai enfrentar, para além dos que já tem.

Mas o que mais chama a atenção de propostas extremamente inexequíveis?

Todas elas são fantasiosas e incompletas. Eu não chamaria as propostas necessariamente de absurdas. O problema é que não levam em consideração o que significa o Brasil inserido no planeta Terra. O mundo passou por uma pandemia e está extraordinariamente diferente do que era nas últimas eleições. Há uma imensa descontinuidade que não é levada em consideração. Não dá para querer pensar com diretrizes parecidas com o que pensava em 2018, porque o mundo simplesmente mudou.

E como inserir o Brasil nesse novo mundo? Como evitar que continue ficando fora das novas mudanças do cenário internacional?

O mais importante, nesse contexto, é que os futuros formuladores de política econômica pensem e reflitam não só sobre o que é importante para o Brasil internamente, mas como a inserção no mundo é afetada por choques em profusão na economia mundial. Falta esse olhar de que, mal ou bem, o Brasil pertence ao mundo e o que acontece no país, em termos de política econômica, depende do que está acontecendo lá fora. Agora, o Brasil está crescendo artificialmente. É como se fosse um paciente sobrevivendo à base de ventilação, cheio de tubo. Esse crescimento e esse aumento do emprego estão diretamente relacionados com o ciclo eleitoral e com a intenção do governo de ganhar as eleições custe o que custar. Naturalmente, os problemas se manifestam depois. A gente consegue enxergar isso, mas convencer a população, em geral, é uma tarefa quase que impossível.

O governo tem um discurso otimista. Afirma que o Brasil retomou em V, está descolado dos outros países e que a economia vai bombar…

O descolamento é temporário. Ele nunca é permanente, porque o Brasil não está em Marte. O Brasil está na Terra. O país só teria um descolamento permanente se o Brasil estivesse em outro planeta, mas não está. Não é conveniente para o governo falar sobre os problemas que vão vir pela frente, porque é um momento de eleição. O discurso econômico é um discurso político. Não é um discurso técnico a respeito do que está acontecendo. É um palanque.

Um dos argumentos é a diminuição da relação dívida-PIB devido à inflação. Mas tem um monte de precatórios debaixo do tapete…

Esse argumento da dívida-PIB diminuindo por causa da inflação a população em geral não consegue compreender. Esse é um efeito alheio para qualquer pessoa comum. Nisso você cai no problema de comunicação. O importante é comunicar que tem várias coisas plantadas que vão estourar no ano que vem. É importante dizer que o cenário é inflacionário, independentemente do que faça o Banco Central. As pessoas precisam estar preparadas para isso. A tendência é o crescimento do Brasil diminuir. Como ninguém fala, o discurso do governo prevalece. Mas as pessoas não se convencem necessariamente com isso porque estão vendo a inflação comer o salário.

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