A independência do Banco Central (BC), conquistada com a sanção da Lei Complementar nº 179, de 24 de fevereiro de 2021, será finalmente testada na próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), que ocorre nas próximas terça e quarta-feira. As apostas do mercado variam entre 0,50 e 0,75 ponto percentual de alta na taxa básica de juros (Selic), atualmente em 13,25% ao ano, mas analistas avaliam que o mais aguardado da reunião será o comunicado do colegiado. Nele, o BC deverá dizer se vai interromper o processo de elevação da taxa ou seguir o fluxo de alta nos juros internacionais, promovido pelos bancos centrais com o objetivo de combater a inflação global, que não dá sinais de trégua.
Para a maioria dos especialistas ouvidos pelo Correio, o argumento de que o BC brasileiro iniciou o ciclo de aperto monetário mais cedo, em março de 2021, quando a Selic estava no piso histórico de 2% anuais, não será suficiente para justificar a interrupção da alta dos juros em um cenário em que o câmbio segue pressionado, devido às incertezas na política e à expectativa de piora da inflação e do cenário fiscal em 2023. Eles ressaltam que não adianta olhar para a inflação de 2022 porque, mesmo com a perspectiva de queda pontual devido à redução dos tributos sobre combustíveis, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) continuará acima do teto da meta, de 5%, neste ano, e de 4,75%, no ano que vem. Ao mesmo tempo, afirmam que a principal consequência da continuidade do aperto monetário é uma só: recessão, que pode acontecer entre o fim deste ano e o começo de 2023.
Atuação criticada
Pela primeira vez, as eleições terão um BC autônomo, mas não se sabe até que ponto ele exercerá essa independência. Nos pleitos anteriores, a atuação do BC sempre foi criticada — principalmente pelo ministro da Economia, Paulo Guedes — por interromper os ciclos de aperto monetário durante as campanhas políticas. Mas analistas reconhecem que não será fácil para o Copom se explicar caso resolva parar com o aumento da Selic em meio à campanha eleitoral, que começa oficialmente no próximo dia 16.
Se quiser dar um sinal de que é realmente autônomo, o BC poderá jogar contra o presidente Jair Bolsonaro (PL) na corrida eleitoral. Juros mais altos significam crédito mais caro e menos impulso na economia. Não à toa, o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 2023 projetado pelo mercado, abaixo de 0,50%, não para de encolher diante da perspectiva de que os juros devem continuar elevados e acima de dois dígitos até dezembro do ano que vem. Para piorar, o Executivo não ajuda o trabalho do BC no combate à inflação, porque está tomando medidas que aumentam despesas e pioram o quadro fiscal — apesar do discurso das autoridades de que o processo de consolidação está em curso.
Na visão de especialistas, os riscos fiscais aumentaram com medidas recentes do governo, como o pacote de R$ 41,2 bilhões aprovado com a PEC Kamikaze, denominação dada pelo ministro Paulo Guedes. Esse pacote de benefícios, que começam a ser pagos nesta semana, deve ajudar e armar uma série de "bombas fiscais" no próximo ano, porque as benesses dificilmente serão suspensas.
O principal problema que deverá ser considerado na reunião do Copom é a desancoragem das expectativas de inflação. Apesar de a tendência dé desaceleração dos índices nos próximos meses, o BC caminha para o fracasso na política monetária por três anos consecutivos. No último boletim Focus, a mediana das estimativas do mercado coletadas pelo Banco Central para o IPCA — que mede a inflação oficial — passou de 5,20% para 5,30% em 2023, acima do teto da meta, de 4,75%.
Estados Unidos
Os Estados Unidos entraram em recessão técnica com queda no PIB por dois trimestres seguidos neste ano. Esse fato pode até deixar o Banco Central em uma posição menos desconfortável, reconhecem os analistas, o que poderia ajudar no argumento de interromper a alta da Selic a partir de setembro. "Com os EUA em recessão técnica, fica mais fácil para o BC vender a estratégia de estabilidade na política monetária a partir da reunião de agosto. Mas o mercado não compra muito isso, porque a mediana das projeções continua subindo e está acima do teto, mesmo com a Selic no fim do ano em 13,75%. Por isso, o mercado acha que ficar com os juros parados nesse patamar não será suficiente", destaca Roberto Padovani, economista-chefe do Banco BV.
Quadro fiscal impõe desafio
O ex-diretor do Banco Central José Júlio Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), não acredita que as eleições devam influenciar as decisões do BC ao longo deste semestre. "O compromisso do BC com o combate à inflação é legítimo e ele dá todos os sinais de que não há espaço para se curvar a pressões políticas. Além disso, agora, ele tem essa prerrogativa em lei, o que reforça a hipótese de que não haverá interferência", afirma.
Senna reconhece que será difícil para o BC interromper o atual ciclo de alta dos juros, com um cenário internacional incerto, a perspectiva de recessão global e o ambiente doméstico instável, que tem pressionado o câmbio.
E, diante da piora no quadro fiscal, com o governo adotando medidas expansionistas, o trabalho do BC está cada vez mais desafiador. "Vemos as decisões de política fiscal do Executivo na contramão do controle da inflação. A redução artificial do IPCA, neste ano, devido à diminuição temporária de tributos sobre combustíveis, visa plantar inflação mais alta no ano que vem. E o período de tempo com que o BC se preocupa é 2023 e 2024. Logo, tanto o ambiente externo quanto o doméstico não ajudam no trabalho do BC. E, por isso, temos dúvida se o Copom terá êxito em manter a inflação na meta", resume Senna.
Estrategista-chefe da Wealth High Governance (WHG), Tony Volpon considera que a boa reação do mercado em relação à nova alta dos juros dos Estados Unidos, na última quarta-feira, foi um alento para o BC brasileiro. "Mas, o que o mercado dá, o mercado tira. A questão fiscal segue indefinida e, de um lado, ninguém sabe muito bem o que o eventual novo governo fará com os gastos e, do lado da receita, ninguém sabe quanto dessa melhora recente vai durar", explica.
O ex-diretor do BC reconhece que, com a autoridade monetária independente, devido ao histórico das eleições anteriores, "a pausa eleitoral, do ponto de vista estritamente de política monetária, não é adequada".
"O BC não vai ter mais desculpa da falta de independência para interromper o ciclo de alta dos juros. Mas vemos que muitos bancos centrais, com tradição mais longa de independência, tipo Fed (Federal Reserve, o banco central dos EUA), tendem a fazer isso também", destaca. Para Volpon, o que mais preocupa é a divergência das projeções do mercado com as do Banco Central. "O BC está mais otimista nas previsões e, assim, levanta a dúvida se esse otimismo não está influenciado por uma vontade de parar na próxima reunião do Copom", pontua.
O economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também não acredita que o BC deverá interromper o ciclo de alta dos juros durante a campanha eleitoral. "O que está parecendo é que o ciclo de aperto monetário não deve parar e talvez tenhamos uma recessão em 2023, que já está contratada, porque o mundo está em desaceleração e o Brasil não será exceção", explica. (RH)
Ideias próprias
Na avaliação do economista Carlos Thadeu de Freitas Gomes, ex-diretor do BC e economista-chefe da Confederação Nacional de Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), na reunião desta semana, a autonomia do BC será testada definitivamente, pois, além de elevar a Selic, o BC dificilmente conseguirá baixar os juros. "Vimos o BC parar, várias vezes, a alta dos juros durante a campanha eleitoral. E quem é independente tem que provar e mostrar que tem ideias próprias. Por isso, agora, o BC deverá manter os juros elevados, mesmo prejudicando a reeleição de Bolsonaro", destaca Gomes. "Os juros já estão elevados, mas o BC vai ter que rezar para o dólar cair", frisa.
Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, engrossa o coro das apostas de alta na Selic para 13,75% no Copom desta semana e descarta interferência política no BC, apesar de prever o término do ciclo nesta reunião. "Acho que não vai ter interferência. O BC deverá vender essa alta como a última elevação do ciclo atual. Seria pior para o governo se o BC continuasse a subir os juros durante a eleição. Por enquanto, a Selic em 13,75% anuais já é suficiente. Um quarto trimestre turbulento pode fazer o BC voltar a subir mais a Selic", afirma.
Julio Hegedus, da Mirae Asset, reforça a preocupação com as bombas fiscais armadas para 2023, apesar de os dados apresentarem melhora neste ano, com ganhos de receita com dividendos e medidas de estímulo. "Por isso, o BC deverá atuar com mais rigor no balizamento dos juros e no aperto monetário", afirma ele, que não descarta a Selic acima de 14,25% ao ano se o BC "resolver antecipar o aperto monetário" e, assim, manter os juros em um patamar mais elevado por mais tempo. "Até porque o rearranjo fiscal de 2023 deve trazer novas pressões inflacionárias pelo retorno dos impostos e o fim de outras isenções", acrescenta.
Processo complexo
O professor Luiz Gonzaga Belluzzo, da Unicamp, observa que o processo inflacionário atual é complexo, pois combina choques de oferta concentrados nos combustíveis e nas commodities que permeiam toda a economia, e, por isso, a carestia é mais persistente. No caso do Brasil, diz ele, o BC não tem os instrumentos para lidar com esse cenário. "A capacidade de difusão desse choque inflacionário é muito grande e, se o BC aumenta os juros com muita violência, a economia despenca. A inflação machuca muito mais as camadas mais pobres, porque os salários são rapidamente corroídos. É verdade. Mas se você aumenta muito os juros e derruba a economia, aumenta o desemprego. E, quando se perde o emprego, a perda da renda é infinita. Essa é a complexidade dos processos econômicos na economia de mercado." (RH)