A resposta para o questionamento "o que é ser liberal?" depende de quando, de onde e para quem a pergunta foi feita.
Uma pessoa que se diz liberal pode ser de esquerda, de direita, de centro, democrata, autoritária, progressista, conservadora, petista, bolsonarista, a favor da legalização das drogas ou contra a legalização das drogas, por exemplo.
Mas como isso é possível? No fim das contas, tudo gira em torno das diversas definições do conceito de liberdade e das enormes divergências sobre o que deve ser feito para garanti-la. E é por isso que as pessoas que se dizem liberais (ou que são chamadas de liberais) podem defender tantas coisas diferentes.
Nem sempre foi assim, no entanto. No início, entre os séculos 18 e 19, o liberalismo se consolidava na política de olho principalmente em uma coisa: reduzir ou acabar com os poderes quase ilimitados dos reis e ampliar os direitos individuais. Mas, desde então, surgiram vários liberalismos, com muitas ramificações e divergências.
Atualmente, os liberais costumam ser divididos em dois grandes grupos: um mais à direita (conservador, neoliberal ou libertário) e outro mais à esquerda (progressista ou igualitário). E muitas vezes o debate passa mais por questões econômicas do que por questões políticas.
Para dar conta de toda essa complexidade, a BBC News Brasil vai responder a algumas das questões mais fundamentais para entender o liberalismo (ou os liberalismos) e seu peso político, explicando primeiramente as origens da ideologia e sua identificação com a direita ou com a esquerda do espectro político.
Depois, explicaremos como os liberais atualizaram suas ideias e se dividiram em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil. Em seguida, mergulharemos em uma das principais críticas ao pensamento liberal: a desigualdade social. E, por fim, abordaremos a mais famosa corrente liberal no Brasil: o neoliberalismo.
As origens do liberalismo
O liberalismo como conjunto de ideais e posições políticas se consolidou na Europa e nos EUA a partir do século 19. Mas as origens dos conceitos que iriam resultar no liberalismo tem uma história muito mais antiga e — muitas vezes — nebulosa.
No livro Ideologias Políticas: Uma Introdução, o cientista político Andrew Shorten cita laços do liberalismo com a Grécia e a Roma Antiga, onde floresciam teorias e práticas sobre igualdade, democracia e o Estado enquanto garantidor da liberdade. E também com a China antiga e a defesa que o filósofo Lao Tsé fazia da existência de uma ordem natural (sem interferências humanas).
Há também traços de ideias liberais por volta do século 16, mais especificamente na defesa da liberdade de pensamento durante a Reforma Protestante, liderada por Martinho Lutero, e na consolidação do capitalismo enquanto sistema econômico.
Mas o filósofo e professor brasileiro Amaro Fleck (UFMG) explica que o termo liberal carregou, do início da era cristã até o final do século 18, diversos significados que não estavam ligados exatamente a uma ideologia política ou a um posicionamento político. A palavra liberal servia, por exemplo, para descrever alguém tolerante, nobre, generoso, extravagante, não fanático ou livre de preconceitos.
A doutrina liberal começa a ganhar forma, ainda sem o nome liberalismo, ainda no século 17. Dois dos principais pensadores apontados como precursores dessa corrente são os britânicos Thomas Hobbes e John Locke, ambos associados à defesa do uso da razão em detrimento das verdades religiosas absolutas. Essa perspectiva seria o centro do Iluminismo, movimento que começa no século 17 e vai até o século 18.
Hobbes defendia, por exemplo, que o Estado precisava de justificativas bem plausíveis para restringir a liberdade dos cidadãos. Locke falava em governo limitado, respeito a direitos dos indivíduos e defesa da propriedade pelo Estado, entre outras questões.
Durante o Iluminismo, o termo liberal começaria a denotar em francês uma defesa das liberdades individuais e das liberdades políticas. Mas ainda não havia um conjunto de ideias liberais organizadas, um liberalismo propriamente dito.
Outro nome importante ligado ao Iluminismo e às raízes da doutrina liberal é o filósofo e economista escocês Adam Smith, que viveu no século 18 e é considerado por alguns o pai da economia moderna. Ele foi o primeiro a explicar conceitos econômicos como preço, produção, distribuição, finanças públicas, comércio internacional e crescimento econômico.
Smith criticava duramente a regulação do comércio pelo Estado e dizia que se as pessoas fossem livres para se desenvolver, isso produziria prosperidade econômica para todos.
Segundo Fleck, o termo liberal só se tornaria mesmo um rótulo político, uma referência à ideologia política do liberalismo, no século 19. Mais especificamente nas Cortes espanholas entre 1810 e 1812 como uma posição política contrária ao absolutismo, um sistema político caracterizado por um líder supremo com poder quase ilimitado, como as monarquias da época.
"O liberalismo é uma sociedade dos direitos. É um modelo de sociedade baseado em direitos e baseado na lei. O Estado democrático é liberal. É o Estado de direito versus o Estado de arbítrio. Ninguém é obrigado a fazer nada ou a deixar de fazer se a lei não diz. E é do liberalismo que vêm, por exemplo, todos os direitos fundamentais, os direitos civis. O liberalismo vai conquistando isso pouco a pouco. Tirava poderes do rei e transferia para parte dos cidadãos", explica Wilson Gomes, pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em entrevista à BBC News Brasil.
Ao longo do século 19, o liberalismo ganha força crescente na Europa por meio de pensadores que já se enxergavam como liberais, a exemplo do francês Alexis de Tocqueville e do inglês John Stuart Mill.
Em obras como Da Democracia na América, Tocqueville passa a defender uma primeira versão teoricamente bem elaborada de um modelo antidemocrático ou pouco democrático do liberalismo, afirma Fleck.
Isso porque Tocqueville enxergava o governo popular como uma ameaça (numa espécie de tirania da maioria contra a minoria) e a expansão dos direitos sociais (como o direito ao trabalho) como uma usurpação da verdadeira liberdade ao desembocar no socialismo (e por extensão, em sua visão, em uma nova forma de servidão). Era uma espécie de corrente mais conservadora do liberalismo.
Stuart Mill, numa espécie de corrente mais social liberal, considerava que a liberdade passa pelos limites impostos à maioria da sociedade e aos políticos governantes para evitar tiranias — seja em regimes de livre comércio, como os capitalistas, ou com intervenção e regulação estatal na economia, como os socialistas.
Mas quais seriam esses limites? Fleck explica que o pensador inglês se orientava pelo chamado princípio do dano, ou seja, a "humanidade só pode interferir na conduta individual para sua própria autoproteção, para evitar danos a outros indivíduos (e nunca para evitar que o indivíduo cometa danos contra si mesmo)".
Fleck conta que, naquela época, o termo liberal passou a ter uma conotação também econômica apenas na Grã-Bretanha, e não apenas política, como na Alemanha, França, Espanha ou Itália.
"Quando se falava de liberalismo nesses países, falava-se necessariamente da defesa das liberdades individuais e políticas, e de uma defesa desconfiada de um governo representativo, que deveria ser também moderado porque senão poderia resultar em tirania. (…) Apenas na Grã-Bretanha é que houve esse vínculo entre liberalismo político e liberalismo econômico. Isto é, entre a defesa desconfiada de um governo representativo e a defesa enfática do livre comércio."
O neoliberalismo
No início do século 20, o liberalismo sofreria uma de suas principais reformulações: o neoliberalismo.
Em sua tese de doutorado na Unicamp sobre o neoliberalismo e os institutos liberais no Brasil pós-redemocratização, a cientista social e escritora brasileira Denise Barbosa Gros explica que o neoliberalismo, em resumo, consiste em "legitimar, teoricamente, um conjunto de mudanças na forma de gerir a economia e a sociedade, dentre as quais é central a diminuição do papel que o Estado desempenha num modelo econômico que permite maior integração dos países ao processo de globalização financeira, dos mercados e da produção".
Um dos principais alvos das mudanças seria o princípio clássico liberal do laissez-faire ("deixai fazer", em francês), que tratava da ideia de que o mercado seria uma entidade natural da economia que deveria ficar a salvo da intervenção do governo e do Estado. Não deveria haver, portanto, nem regulação do mercado de trabalho, nem medidas de proteção no comércio internacional, por exemplo.
Expoentes da doutrina liberal como o economista e filósofo austríaco Friedrich Hayek (Prêmio Nobel e um dos líderes da chamada Escola Austríaca) e o escritor americano Walter Lippmann criticavam a adoção radical do laissez-faire e defendiam a ideia de "um Estado limitado, porém necessário".
Ou seja, alguns dos liberais do século 19 defendiam que não deveria haver qualquer interferência do Estado no livre mercado, deixando-o como sempre esteve porque o mercado tenderia naturalmente ao equilíbrio. Depois, neoliberais como Hayek passaram a defender uma interferência mínima do Estado para criar deliberadamente um sistema econômico competitivo que favoreça o "livre mercado".
Fleck, da UFMG, explica que a defesa de Hayek pela intervenção do Estado é bastante restrita e ligada a serviços essenciais. "Não há dúvida de que um mínimo de alimentos, abrigos e roupas suficientes para conservar a saúde e a capacidade do trabalho pode ser garantido a todos", escreve Hayek no livro O Caminho da Servidão.
Mas isso não significa que Hayek seja a favor da intervenção do Estado na economia. Pelo contrário. Segundo Fleck, o argumento central de Hayek passa pela ideia de que a interferência do Estado na economia (para corrigir distorções de preços, salários ou setores econômicos, por exemplo) levaria inevitavelmente a um regime totalitário, com cada vez mais controle sobre a sociedade. Hayek fazia uma espécie de alerta contra os riscos inesperados do método usado por socialistas para alcançar mais justiça social e igualdade.
"O argumento de Hayek segue o padrão da ladeira escorregadia. Uma vez que se recorre ao procedimento do planejamento central, se cria uma propensão a usá-lo novamente e de forma cada vez mais intensa. Assim se dá cada vez mais poder ao comitê de planejamento, que de forma arbitrária decide a vida de milhares de indivíduos. Ainda que se tomem todas as devidas precauções, a concentração de poder resultará em tirania", explica Fleck.
Mas, entre os anos 1950 e 1960, o neoliberalismo começaria a viver um novo momento, capitaneado pelo economista americano Milton Friedman, então professor da Universidade de Chicago e também Prêmio Nobel de Economia. Nesse momento, os neoliberais voltam a defender alguns aspectos liberais como o laissez-faire e de um não intervencionismo quase radical.
Além disso, a chamada Escola de Chicago defendia, segundo o Dicionário Routledge de Economia, que as forças do livre mercado tinham poder para resolver quase todos os problemas da sociedade e que o Estado deveria ter o mínimo poder possível e se abster da busca inviável de controlar a economia.
Logo, as ideias neoliberais não ficariam restritas aos economistas. E não demorou para que políticos começassem a levantar a bandeira do neoliberalismo e serem eleitos — ou darem golpes de Estado — defendendo essa ideologia.
Esse avanço ganhou força particularmente a partir da década de 1970, quando a estagflação (combinação de estagnação econômica ou recessão com inflação alta) e outros problemas econômicos semearam dúvidas sobre as políticas mais intervencionistas inspiradas pelo economista britânico John Maynard Keynes. Foi quando muitos políticos governos buscaram alternativas para cortar gastos públicos e promover o crescimento econômico.
Os três principais difusores da alternativa neoliberal no campo político foram o presidente americano Ronald Reagan, a primeira-ministra britânica Margareth Thatcher e o ditador chileno Augusto Pinochet.
No poder entre 1979 e 1990, Thatcher deu origem ao fenômeno político batizado de thatcherismo, termo cunhado pelo sociólogo britânico-jamaicano Stuart Hall.
Thatcher e seus aliados do Partido Conservador se notabilizaram por desregulação, privatização, redução da carga tributária e do dinheiro em circulação (para conter inflação) e nacionalismo, resume o Dicionário Conciso de Política de Oxford.
O neoliberalismo de nomes como Hayek e Friedman era uma das principais influências teóricas do thatcherismo, marcado também pelo princípios de lei e ordem e de liberdade associada à responsabilidade individual (algo mais ligado aos libertários do que aos conservadores).
Com o objetivo de reerguer a economia britânica e modernizar o conservadorismo, Thatcher substituiu todo o aparato de bem-estar e proteção social por um programa de austeridade fiscal com enorme corte de gastos e ampla redução do tamanho do Estado por meio da venda de empresas públicas de setores como gás, energia, água e telecomunicações.
Durante esse período, thatcheristas também atacaram sindicatos, monopólios, servidores públicos, a União Soviética e a União Europeia. Por outro lado, formaram uma espécie de coalizão com governantes como Reagan, que ao lado de Thatcher lideraria um movimento político batizado de nova direita ("new right", em inglês).
Reagan foi eleito em 1980 com apoio de uma corrente ideológica chamada neoconservadorismo, a principal transformação do conservadorismo tradicional desde o seu surgimento.
Houve uma espécie de união entre diversos grupos de direita, como cristãos evangélicos, intelectuais que se afastaram da esquerda, defensores da família tradicional e de leis mais duras, grandes empresas e militares anticomunistas.
Todas esses grupos se uniriam em torno do liberalismo libertário (com intervenção mínima do Estado na economia e na sociedade), do tradicionalismo moral e do anticomunismo, explica a cientista política e escritora brasileira Marina Basso Lacerda em sua tese de doutorado que daria origem ao livro O Novo Conservadorismo Brasileiro: De Reagan a Bolsonaro, finalista do prêmio Jabuti em 2020.
O Chile sob Pinochet, por fim, seria considerado pelo historiador e escritor britânico marxista Perry Anderson como a primeira experiência neoliberal sistemática do mundo.
Pinochet chegou ao poder em 11 de setembro de 1973, data em que os militares deram o golpe que resultou na deposição e na morte do então presidente socialista Salvador Allende.
Naquela época, o país sul-americano enfrentava uma forte crise econômica. O governo Allende havia nacionalizado diversas empresas privadas e permitido a tomada por trabalhadores de fábricas e propriedades rurais, o que aumentou a hostilidade de grande parte do empresariado. Além disso, a inflação afetava os salários da classe média.
Ao tomar o poder, Pinochet entregou o comando da economia a um grupo de economistas formados na Universidade de Chicago (que depois seriam conhecidos como "Chicago Boys"), sob a liderança de Friedman. Quase que imediatamente, eles afrouxaram os controles estatais sobre a economia, liberaram exportações, venderam estatais e confiaram na "mão do mercado" para conduzir o crescimento econômico do país, algo considerado revolucionário naquele momento.
"Inspirado em Hayek, Friedman e na Escola de Chicago, o Chile conseguiu, durante a ditadura, de 1973 a 1989, aplicar o receituário liberal em toda a sua extensão: desregulamentação, desemprego, repressão sindical, 'redistribuição' de renda em favor dos ricos e privatização dos bens públicos", escreve Denise Barbosa Gros em estudo sobre o tema.
O regime de Pinochet também ficaria marcado pela extrema violência contra qualquer oposição. Mais de 3 mil pessoas foram mortas pela ditadura chilena e dezenas de milhares foram torturadas ou presas ilegalmente.
Neste período no Chile há também uma aproximação dos neoliberais com os neoconservadores, movimento que no Brasil se tornou popular pelo rótulo "liberal na economia e conservador nos costumes".
Na prática, esses liberais conservadores defendem que o Estado não pode intervir na esfera pública (ao oferecer ensino público ou cotas em universidades), mas pode na vida privada (ao proibir aborto e consumo de drogas).
Divisões entre liberais
A partir dos anos 1970, os liberais passam a se dividir em duas grandes vertentes que reformulam princípios clássicos do liberalismo: os igualitários e os libertários (que têm similaridades com os neoliberais).
"E ambos reivindicam ser os herdeiros de fato da tradição liberal", afirma o cientista político britânico Andrew Shorten no verbete sobre liberalismo do livro Ideologias Políticas: Uma Introdução.
Os liberais libertários como o filósofo político americano Robert Nozick geralmente consideram que as ideias dos liberais igualitários são deturpadas e incompatíveis com a tradição liberal.
O Dicionário de Política Routledge traça algumas diferenças entre liberais e libertários — que são considerados uma forma extrema do liberalismo clássico. "Um libertário acredita que a liberdade individual radical e a completa autossuficiência são os estados políticos mais desejáveis e devem ser usados como um parâmetro para julgar os sistemas sociais reais e suas restrições à liberdade."
Segundo esse dicionário, o pensamento libertário, surgido nos EUA, defende veemente o direito à propriedade e o "Estado mínimo", no qual "apenas algumas questões cruciais precisam ser, ou moralmente podem ser, tratadas pelo Estado; e é fortemente limitado o poder do Estado de exigir contribuições financeiras para exercer tal papel".
Como explica a cientista política e escritora brasileira Marina Basso Lacerda, essa corrente libertária defende um Estado estritamente limitado à proteção contra força, roubo ou fraude e à proteção de contratos e propriedades, negando "qualquer razão moral para se mitigar a desigualdade e criar políticas de bem-estar".
Sob essa perspectiva libertária, não é papel do Estado prover sistema de educação ou saúde pública, por exemplo, mas agir como uma espécie de vigia noturno.
Há, assim, uma aproximação entre neoliberais e libertários em torno de diversas ideias, como a de que "a interferência do governo na economia e os programas sociais geravam inflação, endividamento, prejuízos à produtividade e, mais do que isso, desestimulavam o trabalho e a inovação", explica o historiador e professor brasileiro Roberto Moll (UFF) em artigo sobre o tema.
Na política contemporânea, é possível identificar defensores do liberalismo libertário na base de apoio do então presidente americano Donald Trump (Partido Republicano) e do atual presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL).
Por outro lado, o grupo de liberais igualitários é bastante influenciado pelas ideias do filósofo político americano John Rawls, que trata de justiça social e da igualdade de oportunidades como valor liberal fundamental. Para ele, cada pessoa tem direito à maior quantidade de liberdade compatível com a liberdade dos outros.
"A consequência da teoria de Rawls é que pode ser permitido à sociedade deixar que algumas pessoas tenham uma maior fatia de recursos do que outras, mas somente se isso realmente melhorar a situação dos menos abastados", explica Shorten.
Isso significa que, se a concentração de riqueza afetar a igualdade de oportunidades, e portanto a liberdade, dos outros cidadãos, ela deve ser prevenida.
Em entrevista em 2019 à BBC News Brasil, o economista e cientista social brasileiro Eduardo Giannetti explica que Rawls propunha um teste da boa sociedade a partir do principio da escolha sob o véu da ignorância.
"Nessa proposta (de Rawls), a sociedade ideal é a seguinte: você não nasceu ainda, você não sabe qual vai ser a sua condição ao nascer, o nível de renda da sua família, sua família, seu gênero, a cor da sua pele, sua orientação sexual e você precisa eleger uma sociedade na qual você gostaria de nascer, considerando que tudo pode acontecer com você. Quais seriam as características da sociedade em que você escolheria nascer? São duas: a sociedade em que a condição do menos favorecido é menos ruim, porque você quer se proteger da pior possibilidade, e a que existe maior permeabilidade para que você possa ascender e melhorar a sua condição com seu próprio esforço."
A igualdade de oportunidades, ressalta Giannetti, é diferente da igualdade de resultados, que ele considera improdutiva e injusta. Ou seja, criar oportunidades favoráveis para todos não é a mesma coisa que criar um sistema "em que todo mundo chega igual independente do que se empenhou, do quanto fez, do talento, de quanto valoriza".
É possível perceber a influência do liberalismo igualitário no debate sobre ações afirmativas no Brasil, por exemplo.
Em seu voto a favor das cotas raciais em universidades federais do país, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, cita em 2012 o princípio da justiça distributiva de Rawls. "Só ela permite superar as desigualdades que ocorrem na realidade fática, mediante uma intervenção estatal determinada e consistente para corrigi-las, realocando-se os bens e oportunidades existentes na sociedade em benefício da coletividade como um todo."
Liberalismo e neoliberalismo no Brasil
Em A História do Liberalismo Brasileiro, o historiador Antonio Paim afirma que a doutrina liberal de Adam Smith e outros pensadores só seria difundida no Brasil no século 19, décadas depois da publicação de sua obra A Riqueza das Nações, de 1776.
Nesta época, o liberalismo chega ao país em meio a dois conflitos centrais com a ideia de liberdade individual: a escravidão e a monarquia.
Segundo a historiadora e professora Ana Cristina Lage (UFVJM), durante o Império brasileiro, dois grupos ganharam força política: os liberais e os conservadores. "Os primeiros defendiam um sistema de educação livre do controle religioso, uma legislação favorável à quebra do monopólio da terra e favoreciam a descentralização das províncias e municípios. Os conservadores opunham-se a essas ideias. Todo o período imperial foi marcado por tensões e conciliações entre os dois grupos."
Mas tanto os conservadores quanto os liberais defendiam a escravidão no Brasil, uma clara contradição aos princípios liberais de liberdade individual e direitos civis, por exemplo. Como justificativa, liberais defendiam o sistema escravocrata a partir de argumentos como o direito à propriedade e a manutenção da ordem vigente.
Na prática, as bandeiras dos liberais brasileiros beneficiariam apenas os homens livres e seus próprios interesses. A exemplo das Revoltas Liberais em 1842, na qual os liberais não lutaram contra a concentração de poder de dom Pedro 2º, mas sim contra os rivais conservadores porque estes ganhavam mais poder em torno do monarca brasileiro.
A batalha política e ideológica contra uma monarquia, como ocorreu com o liberalismo na Europa em ofensiva contra reis absolutistas, só ocorreria décadas depois no Brasil, principalmente a partir da década de 1870, quando parte dos liberais e dos conservadores se juntariam no Partido Republicano.
A partir dali, a tradição liberal seria defendida publicamente por nomes como Assis Brasil e Rui Barbosa, que liderou os liberais na República brasileira, que daria fim à monarquia em 1889.
Segundo Paim, os liberais passaram a direcionar sua plataforma à defesa das liberdades democráticas contra o autoritarismo dos governantes, mas nas décadas seguintes os liberais acabaram perdendo força política no Brasil.
"Em 1920, (o jurista e sociólogo) Oliveira Vianna expressou pela primeira vez, tão clara e completamente quanto possível, o dilema do liberalismo no Brasil. Não existe um sistema político liberal, dirá ele, sem uma sociedade liberal. O Brasil, continua, não possui uma sociedade liberal, mas, ao contrário, parental, clânica (organizada em clãs) e autoritária", escreve o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos no ensaio A Práxis Liberal no Brasil: propostas para reflexão e pesquisa, de 1974.
E como resolver esse dilema? Vianna defendia que o Brasil "precisaria de um sistema político autoritário cujo programa econômico e político fosse capaz de demolir as condições que impedem o sistema social de se transformar em liberal", afirma Santos.
Segundo Denise Barbosa Gros, em sua tese de doutorado pela Unicamp, "desde seus primórdios, o liberalismo brasileiro identificou-se com o liberalismo anglo-saxão, que se preocupava menos com a liberação de uma ordem absolutista e mais com a ordenação do poder nacional".
Um momento-chave para entender como os liberais se posicionaram na disputa política brasileira ao longo do século 20 foi a participação de parte deles na ditadura militar (1964-85).
Nomes importantes do liberalismo nacional apoiaram o golpe e atuaram em governos militares, como os economistas Roberto Campos, ministro do Planejamento do governo Castelo Branco, e Hélio Beltrão, que sucedeu Campos no cargo e foi um dos signatários do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que deu ao início ao período mais autoritário da história recente do Brasil, incluindo o fechamento do Congresso.
Campos justificou, por exemplo, a tomada de poder pelos militares em 1964 para a "necessária" instituição de duas ditaduras "de emergência": a ditadura para debelar a sedição (contra uma suposta ameaça comunista e o impasse institucional no governo João Goulart) e a ditadura para fazer as coisas (para garantir a adoção de medidas impopulares que dificilmente seriam aprovadas num contexto democrático com oposição livre).
Para alguns especialistas, a aproximação de liberais com o conservadorismo ou com o autoritarismo passa também por uma questão de classe social em defesa de seus interesses.
"Muitos desses liberais vêm de famílias e grupamentos sociais que em algum sentido precisariam de liberdade econômica para prosperar, mas que de outro lado são ainda muito presos a uma lógica de valores tradicionais", afirma à BBC News Brasil o cientista político e professor Creomar de Souza (Fundação Dom Cabral).
No período final da ditadura, em meio a uma grave crise econômica, os principais nomes liberais começam a se afastar da política econômica adotada pelos militares, conhecida como desenvolvimentista (Estado como interventor e indutor da economia), e passam a se aproximar das ideias neoliberais (participação mínima do Estado na economia).
Essa nova fase nos anos 1980 foi marcada pela criação no Brasil de diversos institutos liberais, responsáveis por propagar em eventos, estudos e livros o ideário liberal entre empresários, políticos, economistas, jovens e formadores de opinião, entre outros.
Uma das principais influências ideológicas desses institutos era a Escola Austríaca de Economia, mais precisamente de dois de seus teóricos: Friedrich Hayek e Ludwig von Mises.
A Nova Direita brasileira
A aproximação dos liberais brasileiros com conservadores e autoritários voltou a ganhar força nos anos 2000.
Em sua tese de doutorado que daria origem ao livro Menos Marx, Mais Mises: O Liberalismo e a Nova Direita no Brasil, a cientista política e pesquisadora Camila Rocha conta que os liberais se tornaram um dos pilares da nova direita brasileira, consolidada como uma reação ao PT principalmente em grupos na internet.
"Entre 2007 e 2013, os ultraliberais, em conjunto com outros militantes que além do livre mercado também defendiam pautas conservadoras, passaram a circular em novas e antigas organizações civis, grupos e movimentos de defesa do livre mercado e a formar grupos de estudo e chapas para disputa de centros e diretórios acadêmicos em universidades públicas", afirma a pesquisadora.
Segundo Rocha, foram justamente esses grupos que participariam do movimento pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) em 2016, da formação do partido Novo, de mudanças programáticas no PSL e no fortalecimento da campanha presidencial de Bolsonaro em 2018.
"A grande novidade reside no amálgama inédito entre o ultraliberalismo econômico e a defesa de pautas conservadoras no que tange aos direitos humanos e demandas específicas dos movimentos feminista, LGBTQI+, negro, indígena e quilombola. Tal amálgama foi possível em virtude da união de diferentes grupos que possuíam, e ainda possuem, tensões importantes entre si, mas que se unificaram em torno do antiesquerdismo e do antipetismo", escreve Rocha.
Estudo liderado pela antropóloga e professora Isabela Kalil (Fespsp) em 2018 mapeou diversos perfis de eleitores de Jair Bolsonaro, entre eles empresários, advogados, médicos e outros profissionais que foram caracterizados como "liberais antipetistas" e que ressaltavam que "venceram pelo próprio mérito".
"(Eles) defendem redução ou corte de programas sociais, tendem a ver estes programas ou como privilégios ou como formas de tornar as pessoas pouco produtivas. São contra cotas e direitos dos territórios indígenas e se expressam com a máxima 'é preciso ensinar a pescar e não dar o peixe'", afirma o estudo.
Para a socióloga e pesquisadora Sabrina Fernandes (Universidade Livre de Berlim), esses eleitores de perfil liberal falam de uma perspectiva de individualidade, meritocracia, tendo em vista a diminuição da atuação do Estado.
"Esse liberal pode argumentar que é preciso cobrar mensalidade na universidade pública. E ele vai fazer isso falando que essa medida seria mais justa para compensar para as pessoas que têm menos renda. Mas isso, no fundo, também tem um lado conservador, porque nega que a universidade deveria ser gratuita", explica Fernandes.
Muitos desses liberais não apenas apoiaram a candidatura de Bolsonaro como também participaram de seu governo. O principal exemplo é o ministro da Economia, Paulo Guedes, egresso da Escola de Chicago e maior representante liberal no governo.
Nas últimas décadas, Guedes se notabilizou pela exposição de princípios ultraliberais como Estado mínimo, desregulamentação e abertura da economia, corte de impostos e flexibilização da legislação trabalhista.
E na eleição de 2018, Guedes ajudou a atrair o apoio de parte do empresariado e dos investidores à campanha de Bolsonaro sob o argumento de que o então candidato havia se convertido à agenda liberal — as promessas incluíam a privatização de todas as estatais e a venda de imóveis da União, por exemplo.
"Nós somos uma aliança entre liberais e conservadores contra a esquerda que tava levando o país pro caminho da miséria, o caminho da Argentina, da Venezuela, com o empobrecimento da população", disse Guedes em 2021, em entrevista ao lado de Bolsonaro.
Mas essa aliança entre liberais (principalmente neoliberais e libertários) e conservadores (tradicionais e neoconservadores) no Brasil atual não se resume a questões econômicas. É o famoso "liberal na economia e conservador nos costumes". Grosso modo, admite-se a intervenção do Estado na vida privada, mas não na esfera pública.
Para o cientista político e professor brasileiro Ivan Henrique de Mattos e Silva (Unifap), a defesa do desmonte do aparato de proteção social do Estado levou os liberais a defenderem, como os conservadores, a volta da "família tradicional" como categoria central da estrutura da sociedade.
Críticas aos liberais e neoliberais
As principais críticas feitas aos liberais apontam que colocar o mercado no centro das prioridades, desregulamentar a economia e desmantelar os mecanismos do Estado que asseguram o bem-estar da população contribuiu para o aumento da distância entre os mais ricos e os mais pobres em vários países. Segundo essas críticas, a desigualdade social trouxe problemas cada vez maiores para a democracia e para os indivíduos.
O próprio Fundo Monetário Internacional (FMI), considerado um símbolo histórico da disseminação da agenda neoliberal, fez críticas ao neoliberalismo. "Em vez de gerarem crescimento, algumas políticas neoliberais têm aumentado a desigualdade e colocado em risco uma expansão duradoura", escreveu um trio de altos funcionários do FMI em 2016.
Vale lembrar que a partir dos anos 1980 diversos países da América Latina enfrentaram graves crises econômicas e tiveram de pedir empréstimos emergenciais ao FMI. Eles eram concedidos em troca de compromissos com planos de ajustes, que exigiam, entre outras coisas, o desmantelamento de entidades estatais, sua abertura ao livre comércio e ao investimento estrangeiro, privatizações e redução do gasto público em áreas de cunho social.
Em muitos casos, estas políticas conseguiam acabar com períodos de instabilidade macroeconômica extrema pelo qual passavam esses países, sitiados pela dívida e pela hiperinflação.
Mas também são associadas a uma disparada no desemprego e uma deterioração na qualidade de vida que levou muitos a se referir a este período como a "década perdida" da economia latino-americana.
Além disso, há críticas às alianças de liberais com autoritários e/ou conservadores (que limitam liberdades individuais ligadas ao uso de drogas e à prática de aborto, por exemplo), à promoção de uma lógica individualista e ao afastamento dos princípios políticos do Estado liberal.
No livro O Liberalismo Contemporâneo, Antonio Paim faz críticas a um "transplante limitado" das ideias neoliberais de Hayek e Mises para o Brasil. Para Paim, os liberais no Brasil influenciados por eles têm uma espécie de "fetiche do não-intervencionismo", ou seja, têm quase uma crença religiosa de não querer que o Estado se meta em absolutamente nada (mesmo quando há circunstâncias que exigem intervenção estatal).
Uma das principais críticas de Amaro Fleck, da UFMG, à visão não intervencionista de Hayek (disseminada entre liberais e neoliberais no Brasil) é sua crença de que "há uma causa econômica unívoca que determina a estrutura política da sociedade". Ou seja, como se houvesse apenas uma e não várias razões sociais, políticas e econômicas que levaram à ascensão do autoritarismo.
Fleck cita o exemplo de diversos países da Europa que ampliaram as políticas de bem-estar social (ou seja, aumentaram o tamanho do Estado e a regulação da economia) sem terem se aproximado do autoritarismo, ao contrário do que alertava Hayek.
Aliás, outra crítica comum aos liberais e neoliberais dos séculos 20 e 21 passa justamente pela aproximação de regimes autoritários. Entre eles, a ditadura de Pinochet no Chile.
"O sucesso da reforma neoliberal da economia chilena só foi possível porque a implantação de medidas tão drásticas foi garantida por um regime autoritário que sufocou as contestações ao modelo. O neoliberalismo é muito criticado por implantar políticas recessivas que provocam desemprego e enfraquecem o movimento sindical", afirma Denise Barbosa Gros.
Em entrevista no Chile em 1981, Friedrich Hayek afirmou ser totalmente contrário a ditaduras, mas que uma ditadura pode ser um sistema necessário para um período transicional.
"Às vezes é necessário para um país ter, por um tempo, uma forma ou outra de poder ditatorial. (...) É possível para um ditador governar de modo liberal. E é possível para uma democracia governar com uma total ausência de liberalismo. Pessoalmente, prefiro uma ditadura liberal a um governo democrático sem liberalismo. Minha impressão pessoal — e isto é válido para a América do Sul — é que no Chile, por exemplo, testemunhamos uma transição de um governo ditatorial para um governo liberal. E durante esta transição pode ser necessário manter certos poderes ditatoriais, não como um arranjo permanente, mas sim como um provisório."
Wilson Gomes, da UFBA, afirma que aqueles que se apresentam como liberais no Brasil defendem "deixar fora tudo aquilo que faz parte do papel liberal: a proteção de minorias, os direitos dos cidadãos, os direitos fundamentais, o esclarecimento, o predomínio da razão".
E completa: "Ou seja, é um sujeito antiprogressista, portanto iliberal, se dizendo liberal. É um liberalismo iliberal."
Segundo Gomes, "quando alguém no Brasil diz 'sou liberal', significa basicamente 'sou radicalmente antiesquerda porque eu não aceito políticas públicas dessa natureza e acho que o Estado deveria ter o tamanho mínimo possível, não deve interferir na vida dos cidadãos'. É uma espécie de darwinismo social em termo de política social: cada um se vira como pode."
Para a filósofa e escritora Sueli Carneiro, o neoliberalismo no Brasil é uma ideologia individualista na qual o "eu sozinho" se considera agente da transformação e responsável pela própria mobilidade social. Carneiro afirma que essa ideologia é "nociva" porque apenas a luta coletiva traria benefícios para os negros e outras minorias. Segundo ela "só brancos podem se dar o luxo de ser neoliberais porque têm a vida ganha".
*Com informações adicionais de Lígia Guimarães, da BBC News Brasil em São Paulo
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