Portugal

Portugueses sofrem com inflação e veem serviços públicos próximos do caos

Portugal continuará lidando com a praga bem conhecida dos brasileiros, a inflação, que, nos 12 meses terminados em julho, cravou alta de 9,1%, a maior em quase 30 anos

Vicente Nunes - Correspondente
postado em 01/08/2022 06:00 / atualizado em 01/08/2022 07:41
Disparada da inflação e serviços públicos em colapso desalentam a aposentada Adélia Ferraz:
Disparada da inflação e serviços públicos em colapso desalentam a aposentada Adélia Ferraz: "Na minha idade, não verei melhoras" - (crédito: Vicente Nunes/CB)

Lisboa — A União Europeia prevê crescimento de 6% para Portugal neste ano, mas Vitorino Tomaz, 63 anos, diz que "tempos sombrios" estão por vir. Para ele, o país está combinando uma série de problemas — o mais latente deles, a inflação em disparada — que tornarão a vida dos portugueses mais difícil nos próximos anos. "É só ir para as ruas para vermos o que está acontecendo", frisa ele. "Aumento descontrolado dos preços, dificuldade econômica e serviços públicos entrando em colapso", lista.

O sinal mais evidente de que Portugal está descarrilando, ressalta o garçom, que nasceu no Alentejo, mas vive há décadas em Almada, na margem sul de Lisboa, vem do Produto Interno Bruto (PIB), a principal medida da atividade econômica. Depois de avançar 2,5% nos primeiros três meses do ano, o indicador apresentou retração de 0,2% entre abril e junho. Pelos cálculos da Eurostat, o órgão de estatísticas da União Europeia, além de Portugal, somente dois outros países registraram contração no mesmo período: Lituânia (-0,4%) e Latvia (-1,4%).

A perspectiva é de que a segunda metade do ano seja ainda mais dura, independentemente do elevado fluxo de turistas que está movimentando a economia neste verão de mais de 40 graus. Economistas não descartam uma recessão. Portugal continuará lidando com a praga bem conhecida dos brasileiros, a inflação, que, nos 12 meses terminados em julho, cravou alta de 9,1%, a maior em quase 30 anos. O custo de vida nesse patamar solapa a renda dos portugueses, que convivem com um dos menores salários da Zona do Euro. Não por acaso, o país tem perdido mão de obra jovem, que, com o diploma universitário nas mãos, não pensam duas vezes em buscar emprego em países vizinhos.

Vitorino viu isso em casa. O filho mais novo, Diogo, formou-se em biologia molecular e optou por trabalhar na Áustria. "Foi ganhar quase três vezes mais do que receberia se ficasse em Portugal", conta. O problema é que essa fuga de cérebros e de mão de obra qualificada não atinge apenas as empresas privadas, que vêm recrutando empregados no exterior, oferecendo vantagens antes inimagináveis para o mercado português. Bate ainda mais forte no setor público, amarrado pela burocracia, que não consegue repor e ampliar o quadro de pessoal.

Um número significativo de servidores vem se aposentando e os que ainda não têm tempo de serviço para encerrar a carreira migram para a iniciativa privada, atrás de salários melhores. Economistas ressaltam que o elevado nível de aposentadorias no setor público e a dificuldade de reposição de vagas mostram que Portugal não se preparou para o futuro. Esses novos aposentados entraram em órgãos públicos logo depois da Revolução dos Cravos, em 1974, que derrubou o regime ditatorial de Salazar. Aqueles que poderiam substitui-los preferiram tentar a sorte no exterior, reconhece Sandra Utsumi, diretora executiva do Banco Haitong.

Morte de bebês

O resultado disso está nas ruas, na saúde, nos serviços de imigração, na Previdência Social, na segurança, nas escolas. "A qualidade dos serviços públicos caiu muito, e tende a piorar", admite Carlos Melo, 36 anos, agente de seguros. A situação mais dramática está nos hospitais, que sofrem com a falta de médicos e de enfermeiros. Nas últimas semanas, vários serviços foram suspensos, em especial os de obstetrícia e os de ginecologia, voltados para grávidas. Em menos de uma semana, dois bebês morreram por falta de atendimento adequado na hora do parto. Os problemas, reconhece a secretária de Estado de Saúde, Maria de Fátima Fonseca, estão longe da solução, mesmo com a promessa do governo de elevar o valor das horas extras de médicos. "Na minha idade, posso dizer que não verei melhoras", afirma Adélia Ferraz, 81 anos.

Com policiais de menos para o patrulhamento, a sensação de insegurança vem aumentando nas ruas. O argumento do governo de que Portugal é o sexto país mais seguro do planeta não cola mais em parte da população, que vem sendo insuflada pelo Chega, o partido de extrema direita, dono da terceira bancada do parlamento. Para tentar amenizar a situação, prefeituras como as de Lisboa e do Porto optaram por fechar delegacias em determinados horários e deslocar policiais da burocracia para as ruas — há uma semana, o brasileiro Jefferson Terra Pinto, 33 anos, foi espancado até a morte na porta de uma casa de show da capital lusitana.

No que depender dos policiais, a situação continuará tensa. Representantes da categoria têm feito manifestações públicas defendendo uma greve geral. O governo promete reforçar os quadros das polícias, por meio de concursos, e aumentar os salários. Mas poucos acreditam nas promessas. Entre os professores, o descontentamento não é menor. A ameaça, inclusive, é de paralisação assim que as aulas retornarem depois das férias de verão. "São problemas estruturais o que vemos no setor público", reconhece o economista Franquelim Alves, professor convidado da Universidade Católica de Portugal.

As grandes cidades também sofrem com as deficiências na coleta de lixo. Dejetos se acumulam, sobretudo nas áreas mais turísticas. Comerciantes reclamam da sujeira e da falta de segurança nessas localidades. As receitas com os visitantes que vêm de fora são vitais para a economia do país. O problema é que eles acabam sancionando a disparada dos preços, que será combatida com juros mais altos, como avisou o Banco Central Europeu (BCE), que elevou o custo básico do dinheiro em 0,5 ponto percentual, a primeira alta desde 2011.

O presidente da República, Marcelo Rebelo de Souza, tem pedido paciência e resiliência à população, que ainda vê parte do país ardendo em chamas por causa de incêndios que poderiam, em boa parte, ser evitados. Mas está difícil atender a esse apelo, reconhece a aposentada Adélia Ferraz. O agente de seguros Carlos Lopes verbaliza bem esse descontentamento: "Estamos pagando pelos erros de consecutivos governos". A brasileira Maria da Penha, 56 anos, diz que, nas duas décadas em que vive em Portugal, nunca viu um quadro tão complicado, a começar pela inflação. "Tudo está muito, mas muito caro", complementa ela, que trabalha como diarista.

Pobreza e dívida

O ano de 2023 já é visto como terrível pela maioria dos portugueses. "Os efeitos da guerra da Ucrânia, que empurrou os preços da energia (incluindo os combustíveis) para cima, só estão no começo", prevê o agente de seguros. O economista Franquelim Alves não está tão pessimista. "Não estamos vivendo o caos", frisa. Mas reconhece que Portugal tem problemas estruturais de longa data, a começar pelo pesado endividamento público. Em duas décadas, a dívida pública portuguesa saltou de 60% para quase 130% do PIB.

No entender dele, os governos que se sucederam optaram por financiar o crescimento da economia com base no endividamento e no aumento de impostos, contudo, esse movimento não é sustentado. Alves diz que, depois da crise financeira de 2008 e 2009, quando a Troika (formada pela Comissão Europeia, pelo BCE e pelo Fundo Monetário Internacional, FMI) impôs uma série de restrições orçamentárias a Portugal, a dívida pública até caiu. Porém, voltou a crescer por causa da pandemia do novo coronavírus, uma vez que o governo foi obrigado a lançar mão de medidas para socorrer a população, principalmente a mais carente.

A pobreza, por sinal, vem aumentando substancialmente em Portugal. "Só não estou numa situação mais complicada porque faço parte de um programa social do governo, que subsidia as tarifas de energia — com alta acumulada de 31% em 12 meses", diz a diarista Maria da Penha. Ela conta ainda que tem ouvido relatos preocupantes de conhecidos que já não conseguem comprar coisas básicas para a alimentação. Nem mesmo a queda do desemprego, que está em 5,9%, ajudou a reverter a situação complicada das famílias. A razão: a renda não consegue acompanhar as remarcações nas gôndolas dos supermercados.

O presidente do Banco PBI, João Pedro Oliveira e Costa, admite que o elevado custo de vida é hoje, "claramente", o tema mais preocupante neste momento em Portugal, e não descarta o aumento do calote no crédito se a carestia se mantiver nos níveis atuais. "Ninguém consegue mais fechar as contas do mês. Os salários não fazem mais frente aos aumentos de preços", reforça o garçom Vitorino Tomaz. Dados oficiais apontam que o Banco Alimentar, de assistência aos mais pobres, está socorrendo 52 mil pessoas a mais do que antes da pandemia.

Desprevenidos

Os graves problemas enfrentados por Portugal não devem passar despercebidos pelos brasileiros que desejam aportar no país crentes de que o Eldorado existe. Os que já vivem em território luso têm a exata noção do que é viver fora do Brasil e num local em que a renda média já não paga um aluguel básico. O salário mínimo está em 705 euros (cerca de R$ 4 mil) e o arrendamento de um apartamento de um quarto, dependendo da área de Lisboa, encosta dos 900 euros (R$ 5,1 mil). Quem não pode arcar sozinho com o aluguel, se submete a dividir a casa com até seis pessoas — em alguns casos, há revezamento de camas.

A Casa do Brasil, com sede em Lisboa, tem feito um trabalho no sentido de desmistificar a visão de que Portugal é uma terra de oportunidade, especialmente diante de notícias propagadas de que sobram empregos no país. Vagas realmente há, mas o que é pago pelo trabalho prestado, muitas vezes, não banca nem as despesas necessárias com moradia e alimentação. Diz a diarista Maria da Penha: "Em casa, não há problemas porque eu, meu marido e meu dois filhos mais novos trabalhamos. Dividimos todas as despesas. Sem isso, os problemas seriam grandes".

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