O economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e sócio fundador da gestora de investimentos Rio Bravo, teve participação central na formulação, operacionalização e administração do Plano Real, que interrompeu o processo hiperinflacionário que o Brasil viveu entre o fim dos anos 1980 e o início dos anos 1990. Saímos da cracolândia monetária”, diz. “Outro desafio será chegar às Olimpíadas, já que os vícios daqueles tempos tiveram consequências duradouras sobre a nossa saúde econômica.”
De acordo com o economista, é preciso repensar os planos para o futuro diante dos riscos de uma desaceleração global e até de recessão no país em 2023, no contexto atual de piora do quadro fiscal. “Não acredito em recessão duradoura, mas a nossa prosperidade não está garantida”, alerta. A seguir, a entrevista de Gustavo Franco concedida ao Correio:
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Quais os maiores desafios da operação de guerra que foi o início do Plano Real? Que lembranças o senhor guarda dessa época?
A lembrança que domina todas as outras é a do tamanho da desgraça, uma espécie de Cracolândia monetária. Era o fim da linha. Acho que esgotamos todo o dicionário em matéria de erros macroeconômicos e levamos o país para uma trajetória terminal. Ainda sinto arrepios de pensar na encrenca que foi combater tantos problemas, tudo ao mesmo tempo, e com tanta gente achando que não era isso tudo (fenômeno que nos acostumamos a descrever como negacionismo). Como se houvesse uma fina neblina encobrindo e diminuindo o problema.
Depois de 28 anos, podemos afirmar que o Plano Real foi bem sucedido, apesar da escalada recente da inflação? Que desafiosa estabilidade da moeda ainda enfrenta?
É claro que foi (bem sucedido). Saímos de uma situação de quase-colapso e voltamos à normalidade em muitos assuntos, começando pela inflação. Não significa que todos os problemas estão resolvidos, nem que nunca mais vamos errar. Saímos da Cracolândia, o que foi uma grande vitória. Outro desafio será chegar às Olimpíadas, já que os vícios daqueles tempos tiveram consequências duradouras sobre a nossa saúde econômica.
Hoje vemos a inflação voltando a dois dígitos e o Banco Central não conseguindo cumprir as metas por mais de um ano consecutivo, apesar do forte aperto monetário. O que está acontecendo?
É outro ambiente, muito perigoso, já que essa pequena dosagem da mesma droga que já nos fez tanto mal pode trazer complicações desproporcionais. Claro que há risco de perda de controle, como no caso dos “ex-alcoólatras”. Mas o Banco Central tem feito a sua parte. Essa batalha mais recente está pelo meio do caminho, é importante, pois é o primeiro Banco Central com autonomia (mandatos que entram pelo próximo governo), mas tudo indica que terá sucesso em controlar a inflação.
Para onde vai a inflação? A população já está incomodada com a perda do poder de compra e os pobres, como sempre, são os maiores prejudicados.
A população brasileira é hipersensível à inflação, e por boas razões. Não há família brasileira que não tenha uma história ou uma experiência muito triste associada à inflação. Isso confere certa base para a construção política das políticas de estabilização e para as instituições que defendem a moeda. Mas, infelizmente, a memória da tragédia vai ficando para trás, o que apenas favorece o negacionismo. Qual o maior legado do Plano Real, na sua avaliação?
A defesa do poder de compra da moeda em caráter permanente, feita através de uma reorganização institucional, com vistas a proteger o cidadão dos excessos gerados em Brasília. Parece banal em nossos dias, mas era um sonho em 1993.
Como o senhor avalia a movimentação do governo para criar pacotes de bondades que devem desequilibrar o quadro fiscal em 2023? E como o próximo governo, seja qual for, conseguirá lidar com essa bomba fiscal?
Avalio com muita preocupação, e não apenas pelo impacto fiscal direto do “pacote”. Há o problema de se banalizar tanto a “emergência” quanto as PECs. Tem havido uma tendência preocupante, desde o início da pandemia, de se fazer política econômica através de emendas constitucionais. Isso é muito perigoso, pois as coisas deixam de ter limites, os pesos e contrapesos (lei eleitoral, Lei de Responsabilidade Fiscal) ficam enfraquecidos.
Diante desse cenário de piora dos riscos fiscais em um ano eleitoral, há perigo da volta da hiperinflação ou ela foi definitivamente controlada?
Não creio no retorno da hiper. Leva muitos anos para construir uma catástrofe como a hiperinflação, acho que o país não seria capaz de repetir tantos erros, pois as pessoas e as instituições aprenderam. O “peso político” da inflação é gigantesco, e a minha experiência é de que o combate à inflação sempre vence as eleições. A experiência do real foi preciosa nesse sentido, seja para demonstrar o quanto a inflação é danosa para a população, ou como é bom viver sem inflação, seja para atestar que existe uma polpuda recompensa política em se trabalhar contra a inflação e não a favor dela.
Quais suas perspectivas para as economias brasileira e global? Há riscos de recessão em 2023?
As perspectivas já foram melhores. Estamos perdendo tempo, hesitando diante de reformas e agendas que foram lançadas 28 anos atrás, de sorte a reconstruir a prosperidade junto com a moeda. Passou tanto tempo que precisaremos reformar a ideia de reforma e repensar nossos planos para o futuro. Não acredito em recessão duradoura, mas a nossa prosperidade não está garantida.