Lançado há 28 anos, o Plano Real dominou o dragão da hiperinflação e instituiu uma conquista a que a população brasileira já se acostumou: a estabilidade da moeda. Analistas, porém, demonstram preocupação com o atual cenário de deterioração fiscal, reforçado pela PEC "Kamikaze", recém-aprovada no Senado, e de persistência inflacionária. Eles alertam que a estabilidade é fundamental para garantir a eleição de qualquer presidente, pois quem se mostra negligente nessa área é duramente punido nas urnas.
Antes do Plano Real, o brasileiro convivia com uma inflação de 5.000% ao ano, herdada de políticas econômicas equivocadas. Esse patamar é algo impensável nos dias de hoje, embora a carestia tenha voltado a penalizar a população. Atualmente, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) gira em torno de 12% no acumulado em 12 meses, taxa muito mais alta do que as de países desenvolvidos.
O real, lançado em 1º de julho de 1994, sucedeu várias tentativas fracassadas de planos econômicos com congelamento de preços na Nova República, como Cruzado, Bresser e Collor. Nesse período, quatro moedas antecederam o real na batalha de combater a hiperinflação: cruzado (1986), cruzado novo (1989-1990), cruzeiro (1990-1993) e cruzeiro real (1993-1994). Com o brasileiro cansado de ver o corte de zeros nas cédulas — que chegavam a ser carimbadas com novos valores para o aproveitamento de papel —, a implementação do Real, iniciado em 1993, durante o governo Itamar Franco, foi bem recebida pela população.
Na primeira etapa, em março de 1994, foi instituída a moeda de transição — a Unidade Real de Valor (URV) —, para a qual todos os preços foram convertidos, o que ajudou na assimilação da nova moeda. Às vésperas do lançamento do real, capitaneado pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a inflação acumulada em 12 meses chegou a 4.922%, em junho. Em dezembro de 1994, caiu a 916% e passou para 22% no fim de 1995. A partir daí, o índice alcançou dois dígitos em poucas ocasiões, como agora.
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Origem
O programa de estabilização de preços teve como origem um paper acadêmico dos economistas André Lara Resende e Pérsio Arida, que foi apelidado de Plano Larida por Rudiger Dornbush, professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) em uma conferência em Washington, em 1984. "Era um plano acadêmico propondo uma moeda indexada, transição e tudo mais. Dornbush criou o apelido, que acabou pegando e deu a base conceitual", conta Arida ao Correio.
O sucesso do real garantiu a vitória de Fernando Henrique no primeiro turno das eleições presidenciais de 1994, com 55,22% dos votos. O PT votou contra o plano.
"A estabilização é uma longa conquista. Além do Plano Real em si, houve, num segundo momento, a construção da política econômica para sustentar a moeda, como o regime de câmbio flutuante, o ajuste fiscal e o sistema de metas de inflação. Num terceiro momento, foi o processo de acumulação de reservas, que foi a contribuição do petismo para a estabilização macroeconômica", explica Samuel Pessoa, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), ao citar o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que, no primeiro mandato, deu continuidade ao processo de ajuste fiscal e de reformas estruturais.
Na avaliação de Pessoa, o sucesso do Plano Real foi resultado do apoio político e da sociedade, mas os problemas do país ainda precisam ser resolvidos. "O Plano Real deu certo, mas não foi o fim de todos os nossos problemas. Conseguimos estabilizar a economia e eliminar 50 anos de inflação. Mas a inflação atual preocupa. É resultado das respostas contra a pandemia e também da incapacidade do presidente Jair Bolsonaro (PL) de gerir a crise. Não é todo país que está com inflação de 12% ano ano", frisa.
Roberto Padovani, economista-chefe do Banco BV, que integrou a equipe do Ministério da Fazenda na implementação do Plano, considera como um dos principais legados do programa a reversão da tendência histórica de alta da inflação. "Foi a primeira vez que se reverteu essa trajetória", frisa. Ele conta que era bem jovem, na época, e que os técnicos trabalhavam de forma coesa e com empolgação diante do desafio de domar a hiperinflação. "FHC montou um time que teve um grande mérito, porque fez toda a negociação política e teve um papel fundamental no desenho e na implementação do plano todo", resume.
O consenso entre analistas é de que, apesar de alguns retrocessos recentes, o Plano Real deu certo. "Isso é inegável, mas ainda existe um grau de indexação elevado na economia para afirmarmos que ele está consolidado. Para se ter ideia, 27% do IPCA são itens administrados pelo governo. Ou seja, faça sol ou faça chuva, eles são reajustados anualmente e geram mais inflação", destaca Alex Agostini, economista-chefe da Austin Rating.
Para o economista-chefe da JF Trust Gestora de Recursos, Eduardo Velho, que integrou a equipe econômica do governo FHC no segundo mandato, além da estabilização inflacionária, um legado importante foi a eliminação do financiamento automático do deficit público pelo Banco Central por meio da emissão de títulos públicos, que ficaram sob a responsabilidade do Tesouro. "Isso melhorou a gestão das contas públicas, ao lado da Lei de Responsabilidade Fiscal", ressalta.
Miguel Ribeiro de Oliveira, diretor executivo da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), lembra que a inflação não desapareceu por completo e acumula alta de 648,05% nesses 28 anos, o que faz uma nota de R$ 100 da época valer apenas R$ 13,50 atualmente. "Antes do Plano Real, não tínhamos nenhuma referência do valor da moeda, porque os preços subiam diariamente, o que desarranjava a economia. Espero que isso tenha ficado no passado. A atual inflação de dois dígitos traz preocupação, mas acredito que não voltaremos aos patamares antigos", avalia.
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