Mesmo batendo recordes na produção de alimentos, o país atingiu, em 2022, a triste marca de 33 milhões de pessoas passando fome, segundo levantamento divulgado ontem pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Em comparação ao último levantamento, de 2020, mais de 14 milhões de pessoas entraram no mapa da fome. A pesquisa revelou também que 58,7% dos brasileiros enfrentam insegurança alimentar em algum nível, um total de 125,2 milhões de pessoas.
Segundo o presidente da Rede Penssan e ex-presidente do extinto Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Renato Maluf, a situação é comparável à do início dos anos 90, ou seja, representa um retrocesso de 30 anos.
"O levantamento feito pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) no início dos anos 90 tinha um outro método. Mas o número absoluto que o Ipea aferiu foi esse", disse Maluf ao Correio. "O ritmo do que aconteceu no último ano é assustador. É um processo que começou em 2016. Mas a comparação é possível."
Os dados foram coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, com entrevistas em 12.745 lares de 577 municípios, tanto em áreas urbanas como rurais. A pesquisa usou a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), que é utilizada também pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A escala vai de insegurança alimentar leve, quando há medo de faltar comida no futuro, até a fome, caracterizada pela falta efetiva de alimentos.
A pesquisa ressalta quais são as populações mais afetadas pela dificuldade no acesso à alimentação. Nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo, os índices de insegurança chegam a 71,6% e 68%, respectivamente, índices consideravelmente acima da média nacional. O campo também é mais afetado pela fome do que as cidades: no meio rural, 21,8% passam fome, a forma mais grave de insegurança alimentar.
Chama a atenção, ainda, que a insegurança atinge mais os negros. Segundo o levantamento, 65% dos domicílios chefiados por pessoas pardas ou pretas convivem com a restrição. A fome também é mais grave em lares comandados por mulheres em comparação com os liderados por homens: 19,3% e 11,9%, respectivamente. Já o número de crianças menores de 10 anos que passam fome dobrou — de 9,4%, em 2020, para 18,1%, em 2022.
Dificuldade de comprar
Entre as maiores dificuldades no acesso aos alimentos estão a alta generalizada dos preços e o desemprego. "Não estou conseguindo nem trabalhar por conta do preço do combustível", disse ao Correio Tália Pereira Gomes, 24 anos, moradora do bairro Santa Luzia, na Estrutural, catadora de recicláveis e mãe de três filhos. "A gente se alimenta só por conta de ajuda de pessoas que passam por aqui, porque comprar mesmo está sendo muito difícil. Meus filhos já tiveram que dormir com fome porque eu não tinha nada para dar", acrescentou.
Tália recebe o Auxílio Brasil, programa de transferência de renda do governo Bolsonaro, mas afirma que o valor, de R$ 400 por mês, não dá para encher o prato nem para comprar gás.
Erika Priscila Souza Cabral, 32 anos, desempregada, moradora da Estrutural, três filhos, também depende das pessoas do próprio bairro para sobreviver. "Eu só consigo comprar algumas coisas por conta da Bolsa Família (Auxílio Brasil). Está tudo caro. Mas grande parte do que a gente consome é por conta de doação mesmo, ajuda do povo. O barraco tem geladeira, mas está praticamente vazia", disse.
Segundo o diretor e pesquisador da FGV Social Marcelo Neri, um dos passos para reverter a situação é a melhora da economia. "A gente precisa voltar a crescer, e a ter uma economia mais estável. Mas é uma situação difícil. Se você combater a inflação, o desemprego sobe. Se combater o desemprego, a inflação sobre", afirmou. Neri defende ainda que, além da recuperação econômica, é preciso resgatar os programas sociais.
Para o Juliano de Sá, presidente do Consea-RS, "as medidas sociais do governo atual estão muito mais voltadas para o interesse de parlamentares". "Não se tem critérios pelos dados. E ainda temos muita dificuldade de monitorar, faltam recursos aos instrumentos de pesquisas oficiais, até ao IBGE", comentou.
* Estagiária sob a supervisão
de Odail Figueiredo
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