Ucrânia como país vassalo da Rússia com a economia colapsada pelas sanções aplicadas pelos EUA, pela Inglaterra e, sobretudo, pela União Europeia, da qual pouco se esperava, em especial Vladimir Putin, o autocrata cínico e amoral que moveu algoritmos para ajudar a eleger Donald Trump em 2016 e encantou Jair Bolsonaro dias atrás, é o mais provável desfecho da guerra imotivada até na retórica do agressor.
Soa como clichê afirmar que o mundo nunca mais será o mesmo. Não será. Mas por razões que extrapolam o devaneio napoleônico do maior líder do conservadorismo no mundo, razão pela qual seduz a ralé do bolsonarismo e ilude os saudosistas do comunismo real da União Soviética, dissolvida em 1991. Ambos os conceitos estão nas falas dos dois presidenciáveis que lideram as prévias eleitorais.
Isso é inquietante. Não por sugerir que um aspire os desatinos do "dulce" Mussolini e o outro padeça de um esquerdismo pueril frente ao grande choque entre as forças maiores deste século, com a China como desafiante do atual campeão EUA. O combate é por rounds, como em luta de boxe entre pesos-pesados, a ser vencida por pontos.
Lula e Bolsonaro ainda não deram mostras de terem boa compreensão sobre onde nos encaixamos na disputa, tumultuada por um intruso com predicados apenas para a guerra, talvez nem isso, vê-se na Ucrânia.
A China em ascensão, os EUA em luta contra o declínio num cenário de extrema polarização e a Rússia em crise existencial, temida pelo arsenal nuclear herdado, não pelo que fez depois do comunismo, são os atletas da "grande competição pelo poder", ou GPC em inglês.
O determinante deste século são acontecimentos convergentes, no sentido de que forçam mudanças e rupturas, queira-se ou não, como as inovações tecnológicas, os fenômenos climáticos e suas sequelas tipo pandemias virais, sendo a da covid-19, talvez, a primeira, e o esgotamento do fundamentalismo de mercado, vulgo neoliberalismo, devido ao enorme desequilíbrio e insatisfação social que implicou.
Não se enfrentam desafios monumentais sem um Estado forte, que não significa nem balofo nem autoritário, sem burocracia preparada, sem classe política esclarecida e sem sociedade coesa em torno dos sacrifícios e oportunidades que despontam. É sobre como se faz isso que as nações estão em disputa, em crise algumas, dando-se o mesmo no interior de cada país, com diferentes projetos em construção.
A jornada da vida
Os questionamentos contemporâneos avançam, se há plena consciência das partes interessadas sobre o que aconteceu e o que fazer. Outras premissas consideram a paciência para o embate político, já que não se esperam projetos de tecnocratas a serviço do status quo, e visão de futuro — a capacidade de pensar o todo entre peças fragmentadas e enxergar a jornada da vida passando por elas.
Os países asiáticos assim o fizeram e concluíram a passagem para o patamar de sociedades economicamente desenvolvidas e civilizadas, a despeito de várias terem êxito sem as regras da democracia liberal (China e Singapura, por exemplo). EUA e Europa chegaram bem antes.
Mas os EUA se desviaram a partir dos anos 1970, ao tomar o Estado como um ente não necessário, dispensável dizem os libertários, da construção que não é apenas econômica e privada, é social, também ou sobretudo, arrastando a ideologia para amplas partes do mundo.
A crise financeira de 2008 foi a primeira grande fratura do modelo dominante de política econômica e de seu arcabouço institucional. A eficiência dos mercados não regulados e a racionalidade de decisões individuais tomadas com base em informações disponíveis para todos sofreram fortes abalos. A intervenção da mão do Estado, esconjurada na bonança pela "mão invisível" dos mercados, assumiu as perdas com emissões monetárias e dívida à custa do empobrecimento geral.
A globalização abalada
Trump se elegeu prometendo acudir a classe média, trazer de volta a produção que migrara para a China, dando cascudo em Wall Street, mas voltou a cortar imposto dos ricos e continua liderando graças à sua xenofobia e à agenda dos costumes, a mesma de Bolsonaro, aliás.
E veio a pandemia, abalando outro pilar do neoliberalismo, assim chamado para identificar a aplicação do liberalismo clássico, das liberdades individuais, à economia sem interferência do Estado, de governo, de empresas estatais, de impostos, de fluxos cambiais etc.
As empresas constataram que a ênfase na eficiência, com a produção distribuída onde custe menos no mundo, não resiste a lockdowns, que, na China, foram severos na pandemia, nem a paradas súbitas devido a catástrofes inesperadas, como terremotos e ataques cibernéticos, ambos cada vez mais intensos e frequentes. A volta das atividades em ritmo concentrado também encontrou barreiras não planejadas.
"Os choques [de oferta] continuarão até revertermos o curso desse consenso predominante", escreveu no New York Times o editor do The American Prospect, David Dayen, num artigo crítico ao economista Lawrence Summers, prima donna do pensamento mainstream, ao qual ele atribui boa parte da culpa pela inflação pós-pandemia.
Alô, candidatos!
Para Dayen, a "profissão econômica" está "distante das realidades locais [dos EUA, mas poderia incluir Brasil] para compreender as consequências da globalização, da monopolização, financeirização, desregulamentação e logística jus-in-time". Sua fala não é isolada.
Enquanto Summers respondeu com ironia a Dayen, tuitando sentir-se "lisonjeado" que suas ideias sejam tão importantes para a inflação quanto há "trilhões em estímulo fiscal e política monetária fácil", o presidente Joe Biden criticou no Congresso, em seu discurso à nação, a oligopolização ao longo dos nós das cadeias produtivas.
Segundo Dayen, grandes empresas anunciam ao mercado investidor que estão usando os gargalos nas cadeias produtivas e de logística para garantir preços maiores, bem acima dos custos dos insumos. Em seu entender, coincidente com Biden, boa parte da inflação pós-pandemia vem de um "sistema [de produção] sem redundância e flexibilidade".
Tais ideias também são as do núcleo duro dos republicanos nos EUA, o que as tornam mais factíveis, especialmente com o sentimento de cortar a dependência de bens e insumos da China, que se estendeu à Europa depois de Putin se revelar um cavalo desembestado.
Nós, por motivos diversos, devemos estar atentos. Com mais de 200 milhões de habitantes, não bastam os dólares do agronegócio para dar empregos, renda e paz social. Só a indústria exerce tal papel, energizando o setor de serviços, em especial os mais sofisticados. Alô, candidatos! O que vocês têm a dizer sobre isso?