Grandes mobilizações políticas começam com um propósito e não raro terminam com outro. Assim como os protestos em 2013 não eram pelos R$ 0,20 do aumento dos ônibus, a invasão da Ucrânia não é para "desnazificar" o vizinho, como alega o autocrata russo Vladimir Putin, nem para conter um suposto expansionismo da Otan, o tratado de proteção mútua entre os países da Europa e Estados Unidos.
A real intenção vai se descobrindo aos poucos. É a ordem econômica e política assentada no liberalismo o alvo mal disfarçado de Putin, agindo como mão de gato do senhor da China, Xi Jinping, no poder desde 2012 e proclamado presidente vitalício em 2018.
Com tropas russas já acantonadas na fronteira da ex-república da antiga União Soviética, os dois se encontraram em 4 de fevereiro em Pequim para firmar o que Xi classificou de "parceria sem limites". Exatos vinte dias depois a Rússia invadiu a Ucrânia.
Era para ser uma blitzkrieg ou guerra-relâmpago, com Kiev, capital da Ucrânia, tomada em poucos dias. Um mês depois, além de milhares de mortes estúpidas, como as são todas numa guerra, assiste-se os russos atolados, a Europa mais unida que nunca desde 1945, os EUA de Joe Biden de volta à velha aliança que Donald Trump quis romper no meio de suas relações suspeitas com Putin, e a China.
Bem, a China foi surpreendida pela inépcia da máquina de guerra que seria terrível do parceiro e pela unidade beligerante, embora prudente, da Europa e dos EUA de um presidente com aparência senil.
O ponto essencial é que não há amador nem ingênuo neste conflito, com raízes no crescente poderio econômico e militar chinês e na mal resolvida frustração russa, uma potência nuclear decadente desde o colapso soviético em 1991 e com a economia reduzida às exportações de petróleo e gás, sobretudo para a Europa.
As sanções impostas à Rússia, especialmente o embargo de US$ 300 bilhões de suas reservas, são sem precedentes. Na conta do IIF, o think tank dos grandes bancos do mundo, a economia russa deverá encolher 15%, na média do ano, ou 30%, na medida no fim de dezembro.
Ninguém passará ileso a tanta desestabilização, que começou com a pandemia do covid-19 e se agravou com uma guerra no centro da Europa.
Golpe no multilateralismo
O impacto da decisão desvairada de Putin, que ficou sem opções ao se deparar com a resistência da pequena Ucrânia, deverá durar anos, exigindo novas atitudes dos governos no cenário global e medidas de reestruturação da economia nacional, se o multilateralismo ceder ao nacionalismo ou se tornar seletivo, como disse o embaixador Roberto Azevêdo, ex-diretor-geral da OMC, num seminário do Cebri e da Fiesp.
Faremos o quê? Nada significante até as eleições. E talvez nem depois, considerando-se os dois candidatos à frente nas pesquisas.
A consequência do desastre promovido por uma autocracia tolerada até então, com o apoio de outra, a China, que nunca aceitou como estado independente a ilha de Taiwan, o equivalente geopolítico da Ucrânia na Ásia, será, provavelmente, o fim da globalização como a conhecemos desde a 2ª Guerra. É provável que o mundo se agrupe em dois blocos, o das democracias liberais e o das autocracias, com a insegurança que tais movimentos disruptivos embutem.
Paira o fantasma da "guerra fria" — tempo em que EUA e URSS tinham no arsenal nuclear o fator de dissuasão para barrar interferências em suas áreas de influência. Ao menos na retórica, Putin apelou às chantagens de Kim Jong-un, da Coreia do Norte, soldado da causa da China no embate contra o "imperialismo estadunidense", como diz.
Sem inteligência estratégica
A diretora adjunta do FMI, Gita Gopinath, e o chefe do BlackRock, a maior gestora de ativos do mundo, com US$ 10 trilhões sob gestão, Larry Fink, são duas personalidades entre dezenas que passaram a alertar contra o que pode emergir dos choques entre potências — e, entre eles, as evidências apocalípticas da mudança climática.
No Brasil, não há nada elaborado. Ou o presidente Jair Bolsonaro teria sido demovido de ir a Moscou se encontrar com Putin dez dias antes do ataque à Ucrânia. Não há inteligência estratégica em seu entorno, como se viu, especialmente dos militares que o assistem, a maioria formada pelo currículo da Guerra Fria. Lula, seu desafiante na corrida eleitoral, também parece ter ficado no passado, ambos de algum modo atraídos pelo antiamericanismo de Putin, hoje, o guia da extrema-direita no mundo, não da esquerda como querem os iludidos.
Tais constatações são preocupantes, já que, como alerta ensaio da Bloomberg, "na ausência de qualquer ação decisiva do Ocidente, a geopolítica caminha definitivamente contra a globalização". Foi ela que modelou as decisões empresariais dos últimos 40 anos e, sem tal parâmetro, a economia terá de mudar onde haja a orientação do que os conservadores chamam nos EUA de "fundamentalismo de mercado".
Huntington venceu Fukuyama
Na grande batalha intelectual dos anos 1990, segundo o ensaio da Bloomberg, entre Francis Fukuyama, que escreveu O Fim da História (1992), e seu professor de Harvard Samuel Huntington, autor de O Choque de Civilizações (1996), os CEOs ficaram com Fukuyama.
A democracia nem sempre vencerá, como as diretorias das empresas aprenderam com a China, mas a economia sensata geralmente vencerá. Os países se especializariam em sua vantagem comparativa. O livre comércio aproximaria as pessoas, como argumentou Fukuyama, em vez de dividi-las, como advertiu Huntington — e as empresas com foco global, operando cadeias de fornecimento mais econômicas, tenderiam a prosperar. Comercialmente, essa aposta valeu a pena, dizem os autores do estudo, John Micklethwait e Adrian Wooldridge.
O comércio mundial de bens manufaturados dobrou na década de 1990 e dobrou novamente nos anos 2000. As pressões inflacionárias foram mantidas baixas apesar das políticas monetárias frouxas. Mesmo com uma enxurrada de interrupções políticas — tarifas de Trump, Brexit etc. — os lucros permaneceram altos, pois o custo dos insumos (como energia e mão-de-obra) foi mantido baixo.
"Agora, a Grande Ilusão Capitalista está sob ataque em Kiev", eles dizem. "Contra esse irracionalismo, os CEOs que construiam impérios baseados na produção just-in-time agora estão olhando para o just-in-case. Os capitalistas são todos Huntingtonians agora." E nossos candidatos a líderes políticos, por analogia, são o quê? Ganha um fim de semana em Kiev quem souber a resposta.
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