Entrevista

"O Brasil não é um país perdido", diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo

Para especialista, guerra entre Rússia e Ucrânia custará caro ao Brasil, que já sofre com a disparada dos preços dos combustíveis. Contudo, o professor da Unicamp acredita que, mesmo com a sucessão de erros cometidos nos últimos anos, o país tem jeito

Vicente Nunes
Rosana Hessel
postado em 13/03/2022 06:00 / atualizado em 13/03/2022 18:51
 (crédito: Arquivo Pessoal )
(crédito: Arquivo Pessoal )

O Brasil está em uma situação vulnerável para enfrentar um período prolongado de guerra entre Rússia e Ucrânia, acredita o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Além de a economia do país estar flertando com a recessão, a inflação está em disparada e os juros, de 10,75% ao ano, vão subir mais. Para tentar minimizar os impactos econômicos provocados pelos conflitos no leste europeu, ele defende programas como os adotados durante a pandemia da covid-19, em que a presença do Estado foi preponderante.

No caso específico dos combustíveis, que foram reajustados em até 25% pela Petrobras na última quinta-feira, Belluzzo defende a criação de um fundo de estabilização de preços para absorver choques externos. Esse instrumento, inclusive, seria importante para preservar a política de preços da estatal, que acompanha o mercado internacional de petróleo. Não há, no entender dele, porque sacrificar a estatal. "A saída é criar um fundo de estabilização e não deixar passar o choque de preços para dentro. E esse fundo pode ser criado com imposto sobre exportação de petróleo", diz. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Correio.

Estamos diante do conflito no leste europeu, com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Que impactos isso pode ter para o Brasil e para o mundo?

Esse conflito é complicado. É muito mais complicado do que a mídia em geral está falando.

Por quê?

Quando a gente olha, de imediato, parece um conflito dos Estados Unidos com a Rússia. Mas tem processos mais profundos que, na verdade, envolvem a emergência da China. É um fenômeno muito curioso esse da China, porque, de uma certa forma, lembra bem as emergências dos Estados Unidos e da Alemanha no final do século XIX e início do século XX, que soterraram a hegemonia inglesa. O poder econômico dos EUA e da Alemanha não pode ser entendido sem ver a forma como a Inglaterra se relacionou com eles, como uma potência industrial mercantil. Isso é muito parecido com o que aconteceu com os Estados Unidos após o reconhecimento da China como país considerado confiável e democrático com (Richard) Nixon (ex-presidente americano), em 1972. A partir daí, a China começa a fazer reformas, e, logo depois, os EUA promovem a abertura financeira e comercial. A China foi a grande beneficiária da abertura financeira do ponto de vista do investimento estrangeiro direto. E, nesse mesmo movimento, o Brasil perdeu o protagonismo. Naquela época, o país era o mais industrializado entre os ditos, hoje, emergentes, e foi perdendo posição para a China, que conseguiu se transformar em uma potência mundial.

Como fica o Brasil neste contexto global de guerra?

O Brasil deixou de ser um protagonista importante, um receptor de capitais. Agora, o que está entrando, é capital de portfólio. É a arbitragem de câmbio e juros e dos preços dos ativos na Bolsa. Mas é uma operação puramente financeira. Vocês têm uma ideia de um novo investimento estrangeiro de construção de fábrica nos últimos anos? Eles só compram um ativo, empresas preexistentes. Isso é típico de um capitalismo que está financeirizado no mundo inteiro. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, está tentando reverter essa tendência, assim como os europeus, em seu programa de facilitação de investimentos. Mas a verdade é que isso ainda está no início. E, no caso do Brasil, o país está em uma situação em que sofreu uma regressão industrial. Não só porque perdeu muitos setores, como da informática, que estava começando a construir, como não conseguiu incluir os setores da quarta revolução industrial. Portanto, quando se fala em reindustrialização, essa tarefa é muito mais complexa do que foi nos anos 1950, com Juscelino Kubitschek, quando o capital estrangeiro veio aqui e foi usado para articular a indústria nacional, como a automobilística, de autopeças, de bens de capital. Essa tarefa, agora, vai exigir, sobretudo, atenção para essa mudança da natureza da indústria. Um dia desses eu vi uma pessoa, amigo meu até, falando que o mundo está vivendo um período de desindustrialização. Não é isso. O mundo está vivendo um período de hiperindustrialização.

Por quê?

Porque todas as atividades, serviços, agricultura, estão se tornando industrializadas, e a dinâmica delas é movida pelo avanço tecnológico. Olha a agricultura avançada no país, com colheitadeiras, semeadeiras, sistemas de irrigação. Tudo isso é muito industrializado, assim como serviços. É muito diferente do que vivemos no passado. O Brasil está em uma situação subordinada e teve a má sorte de contar com, digamos, sobretudo depois dos anos 2015 e 2016, de forte retração, com políticas econômicas ditas liberais. Francamente, não queria pensar tão mal do liberalismo econômico, que é uma coisa realmente deplorável, primária, e eu chamo de liberalismo das cavernas. Até o jurista (Jeremy) Bentham, um dos pais do liberalismo, advogou a estatização do crédito para poder desenvolver no começo do século XIX. Um liberal viu uma oportunidade. Depois da Segunda Guerra Mundial, todos os países olharam a possibilidade do capitalismo se renovar e se transformar em um sistema inclusivo e com muita capacidade de expansão. O que eu quero dizer é que o Brasil não é um país perdido, de maneira nenhuma, mas precisa de uma outra energia.

E qual é essa outra energia?

O Brasil tem US$ 356 bilhões de reservas e a Rússia, US$ 630 bilhões. Isso nos coloca em uma posição diferente e distinta de outros países, por exemplo, da Argentina, que tem uma vulnerabilidade externa permanente desde os anos 1930. O Brasil teve oscilações e fez essa asneira de se entupir de dívida externa. E todo mundo hoje sabe que é um risco enorme, que desabou nos anos 1980 e que nos levou a essa situação atual. Estamos pagando o preço por essa decisão, ainda que tenhamos revertido, em parte, por causa das reservas, o que nos deixa em uma posição mais confortável. Mas o projeto de política econômica tem que respeitar, da maior maneira possível, a vontade popular. Tem que ser baseado nos desejos da população, como melhorar sua vida, sair dessa situação precária em que está todo mundo metido. Está muito claro o que se precisa fazer na política econômica imediatamente. É salvar essas pessoas que estão submetidas a esse padecimento. A essas dores terríveis de comer em caminhão de lixo.

O Brasil, hoje, está mais preparado para enfrentar uma guerra ou está mais vulnerável?

Vou responder com a maior sinceridade. A depender da continuidade da execução dessas políticas, o Brasil vai ficar muito vulnerável e muito enfraquecido.

As políticas que o senhor fala são as neoliberais que vêm sendo tocadas pelo ministro Paulo Guedes?

Na verdade, o governo não tem política nenhuma. É uma série de promessas, de coisas que não estão se realizando. Além disso, tem uma visão da relação do Estado com o mercado que é completamente esdrúxula, sem nenhum fundamento, porque não existe oposição entre o Estado e o mercado. E existe, sim, às vezes, a contradição. E contradição não é uma coisa ruim, porque quer dizer que você está em uma passagem. Na política monetária existe, o tempo inteiro, essa contradição e é a mesma coisa na política fiscal. Agora, todo mundo está reconhecendo que existe uma capacidade fiscal e monetária do Estado que pode socorrer o setor privado. Na teoria econômica, no fundo, é que se cria uma defesa para evitar avanço do Estado sobre o setor privado. Mas existe uma articulação interna fundamental entre ambos desde o início do capitalismo.

Mas existe limite para o Estado. O que importa é a articulação entre o Estado e o setor privado?

Sim, mas depende. É um ecossistema onde um depende do outro. E o que interessa nesse ecossistema é que gere o que é desejado, como crescimento, criação de empregos e boas oportunidades para todos. É isso que interessa. Aí, vem um e outro criticando que tem muito Estado. O que é isso? Isso é um negócio primário. Economistas que falam isso são pouco estudados.

O senhor acha que muito do que o Brasil está passando hoje tem a ver com essa visão equivocada de que há muita presença do Estado e economia privada de menos?

Seguramente. Na verdade, se fossemos rever o período de crescimento brasileiro, que vem lá dos anos 1930, é uma relação permanente entre Estado e setor privado. Eu ajudei no Documento Dos Oito, que foi escrito em 1979 por todos os grandes industriais brasileiros. Se você ler o documento, verá a concepção, o conhecimento, a noção que eles tinham das relações entre Estado e mercado e do projeto de industrialização brasileira. O que aconteceu nos anos 1980 e 1990 foi varrido, porque as concepções, como diria (Joseph) Schumpeter, são muito importantes. Os economistas incultos são muito narrativos e não dão importância ao sentido das coisas e não veem direto a realidade. Como mostraram alguns filósofos, como (Georg Wilhelm Friedrich) Hegel, sobre o intelecto e a razão. O intelecto é quando você entra em contato com as coisas e a razão, quando você compreende as coisas. É muito diferente.

O Brasil foi pego pela guerra no Leste Europeu com inflação alta, juros subindo e a economia flertando com a recessão. Como ficamos se essa guerra perdurar por muito tempo?

Essa situação de anomalia, de anormalidade, já estava posta na saída da pandemia, que foi assimétrica. Alguns setores saíram mais rápido do que outros, porque houve um choque de oferta. Vamos lembrar que, no pós-guerras, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, houve choque de oferta e controle do choque de preços criando um fundo de estabilização, não deixando passar tudo para a economia. Eu não consigo, francamente, entender como é que um governo minimamente responsável e esclarecido possa trazer para dentro os choques de preços de petróleo quando o Brasil é autossuficiente na produção de óleo cru. Mas faz o que a Noruega fez, um fundo de estabilização. Vocês viram o lucro da Petrobras (de R$ 106,7 bilhões em 2021) e não fizeram nada?

O que o senhor está dizendo é que tem que mudar a política de preços da Petrobras?

Não. Tem que, na verdade, estabilizar. Não se pode danificar a Petrobras como empresa. A saída é criar um fundo de estabilização e não deixar passar o choque de preços para dentro. E esse fundo pode ser criado com imposto sobre exportação de petróleo. Agora, que o petróleo passou de US$ 100 e querem danar a vida de todo mundo, encarecer o gás de cozinha, dos combustíveis etc. A ideia dessa (equipe da) Economia é não mexer na política de preços. Não vou falar Michel Foucault (filósofo francês) para eles, porque vão pensar que é o ponta esquerda da França. O Foucault diz que o mercado é visto como locus da verdade, que conta a verdade na visão dos conservadores. Ele não é o lugar da Justiça, mas da verdade. Mas, no caso do petróleo, tem oferta demais, mas tem um cartel (controlando os preços). Aliás, não há nenhuma livre concorrência em nenhum setor da economia. Há um grau de concentração e de centralização de controle. Hoje em dia, 2% dos acionistas controlam 70% dos ativos financeiros do mundo. E o que eles estão fazendo? Formação de preço, de cartel.

Voltando para inflação, juros e recessão. Como fica o Brasil nisso?

Há um choque de oferta e é preciso ter estoques reguladores para o controle de preços. O mercado de derivativos era para se defender de uma situação e acabou gerando valor em si mesmo. O (Milton) Friedman (pai do liberalismo) dizia que a inflação é um fenômeno monetário. O Brasil não poderia ter chegado em pior forma neste momento. Na verdade, nós não fizemos o que eles chamam de dever de casa, que era aplainar o choque de preços, sobretudo do petróleo e das commodities, se tivesse os instrumentos, e aí poderia se fazer uma política monetária mais suave. Mas, agora, o que vai ser feito: dar uma cacetada nos juros e nas expectativas de crescimento. A economia vai patinar e vai demorar para derrubar a inflação. Diante do risco de o PIB cair de maneira violenta, acho que o Roberto Campos Neto será um pouco mais moderado do que outros banqueiros centrais. Vamos lembrar que, nos Estados Unidos, com um novo choque de oferta, o Fed pode subir a taxa de juros em 3,0 pontos, em vez de 0,25 e 0,50 ponto. Se isso acontecer, vai interromper o crescimento lá e aqui.

O choque de oferta que pode vir dessa guerra pode ser maior do que vimos na pandemia?

Pode ser maior, dependendo da intensidade da guerra e dos setores que serão atingidos.

E isso é mais inflação e mais juros?

Sim, mas aí seria preciso adotar os princípios de uma economia de guerra. Ou seja, tratar esses fenômenos como anômalos e danosos para a economia e adotar procedimentos de uma economia de guerra.

O senhor acha que o Brasil vai sofrer mais do que outros países?

O Brasil toma muitas decisões erradas. Quando é que vamos parar com isso? Só podemos parar com ação coletiva. Se conseguirmos eleger um grupo de dirigentes que tenha uma preocupação diferente, com uma outra visão. Isso também precisa de uma mobilização da sociedade. Ela não está mobilizada para pedir para participar das decisões e do debate público. As redes sociais não são espaço adequado para o debate, porque só têm afirmações. Por isso, a grande imprensa teria um papel muito importante desde que se desvencilhasse do unilateralismo. É muito importante o debate público, com a participação das várias forças sociais que estão comprometidas com o crescimento, porque eu não acredito em automatismo e nem sabedoria científica dos economistas. Se não tivermos um debate muito intenso, vai ser muito difícil sair dessa enrascada.

 

 


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