Ele é motivo de debates na América Latina há décadas, mas, para muitos, é difícil defini-lo e outros acreditam que ele nem mesmo exista: neoliberalismo, a palavra que marcou uma época.
Basta examinar a campanha eleitoral no Chile — o país latino-americano que concentra maior influência das ideias neoliberais — para constatar como esse conceito ainda é um divisor de águas na região.
"O Chile foi o berço do neoliberalismo, mas será também o seu túmulo", segundo Gabriel Boric, candidato de esquerda que venceu o direitista radical José Antonio Kast no pleito presidencial em dezembro.
Kast, por outro lado, apresentava as bandeiras neoliberais, como o livre mercado e a redução da intervenção do Estado na economia. Seu programa de governo mencionava uma das maiores referências dessa linha de pensamento — o economista americano Milton Friedman.
Mas o programa de Kast não fazia menção explícita ao neoliberalismo.
Este é o reflexo de uma tendência que ultrapassa as fronteiras chilenas. Enquanto a esquerda se refere ao neoliberalismo de forma depreciativa, não se ouve com frequência alguém reivindicá-lo pelo seu nome, como Friedman fazia 70 anos atrás.
Alguns especialistas defendem que essa orientação econômica, cujo apogeu teve lugar nas décadas de 1980 e 1990, começou a perder projeção desde a crise financeira global de 2008.
"O neoliberalismo se encontra na defensiva", disse o economista e filósofo brasileiro Eduardo Giannetti da Fonseca declarou à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC).
Mas o que é exatamente o neoliberalismo e por que é tão polêmico?
Um adversário, diferentes escolas
Como o próprio nome indica, o neoliberalismo surgiu no século 20 como um esforço para renovar o liberalismo clássico. A origem do termo remonta a um encontro de pensadores liberais ocorrido em Paris, no ano de 1938.
Seus promotores se opunham às políticas econômicas keynesianas (baseadas nas teorias do economista britânico John Maynard Keynes), que concedem ao Estado um papel fundamental para evitar crises ou recessões.
O economista austríaco Friedrich Hayek, outra importante referência para os neoliberais, argumentava em seu livro Caminho da Servidão (1944) que o planejamento estatal da economia leva ao totalitarismo.
Hayek fundou com outros intelectuais, em 1947, a Sociedade Mont Pèlerin, um centro de pensamento econômico para defender, logo após a Segunda Guerra Mundial, valores liberais como a economia de mercado, a sociedade aberta ou a liberdade de expressão.
As ideias neoliberais ganharam força particularmente a partir da década de 1970, quando a estagflação e outros problemas econômicos no Ocidente semearam dúvidas sobre as políticas keynesianas e muitos governos buscaram alternativas.
Os governos conservadores de Margaret Thatcher, no Reino Unido (1979-90), e Ronald Reagan, nos Estados Unidos (1981-89), adotaram políticas defendidas pelos neoliberais, como a redução do Estado e o controle rígido da oferta de moeda para baixar a inflação.
Mas o neoliberalismo está longe de ser uma doutrina uniforme. Ele inclui diversas escolas, como a austríaca de Hayek e Ludwig von Mises, a escola de Chicago (Friedman) e a escola da Virgínia, de James Buchanan — e há diferenças notáveis entre elas, por exemplo, em questões de política monetária.
Tudo isso dificulta a definição do neoliberalismo, o que é ainda mais agravado, segundo alguns estudiosos, pelas fortes reprovações que a doutrina costuma receber.
"Embora o termo neoliberalismo continue sendo um lugar comum, o seu uso para englobar uma série de coisas que desagradam às pessoas dificulta sua definição clara", segundo Ross Emmett, diretor do Centro de Estudos da Liberdade Econômica da Universidade do Estado do Arizona, nos EUA, declarou à BBC News Mundo.
Um modelo que pode ser exportado?
Os críticos do neoliberalismo afirmam que colocar o mercado no centro das prioridades, desregulamentar a economia e desmantelar os mecanismos do Estado que asseguram o bem-estar da população contribuiu para o aumento da distância entre os mais ricos e os mais pobres em vários países.
Eles acrescentam que a desigualdade social trouxe problemas cada vez maiores para a democracia e para os indivíduos.
No plano político, a esquerda vem tentando frequentemente demonizar o neoliberalismo. "É o caminho que leva ao inferno", declarou em 2002 o então presidente venezuelano Hugo Chávez.
Mas os defensores das ideias de Hayek e Friedman defendem que nem Chávez, nem o restante da esquerda, conseguiram demonstrar uma alternativa com sucesso.
Outros estudiosos simplesmente negam a existência do neoliberalismo.
"Neoliberalismo? Isso não existe!", escreveu o economista Daniel Altman no jornal americano The New York Times em 2005, argumentando que os países ricos, na verdade, nunca se abriram para o livre comércio.
"Não existem novas ou velhas liberdades. Ou há liberdade ou não há. Por isso, o conceito neoliberal não tem sentido", defendeu o economista ultraliberal argentino Javier Milei em agosto de 2021, antes de ser eleito deputado em novembro.
Mas a Argentina, depois do Chile, foi um dos símbolos do neoliberalismo na década de 1990, quando o governo Carlos Menem privatizou tudo o que pôde, desregulamentou a economia e adotou a paridade um por um entre o peso e o dólar.
Essas mudanças foram aprovadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que se referia à Argentina como modelo até dezembro de 2001, quando o país entrou em uma crise financeira muito séria e suspendeu os pagamentos da dívida externa de US$ 144 bilhões (cerca de R$ 815 bilhões) — a maior dívida da história.
James Boughton trabalhou no FMI e foi seu historiador entre 1992 e 2012. Ele nega que a instituição tivesse "uma visão extremista do neoliberalismo", mas admite que a instituição incentivou políticas de privatização e livre mercado em países da extinta União Soviética e da América Latina.
"O FMI impulsionou tudo isso, de forma que, nesse sentido, pode-se afirmar que ele estava incentivando políticas neoliberais", declarou Boughton à BBC News Mundo.
Por outro lado, Giannetti da Fonseca considera "um erro grave" dos neoliberais querer implantar receitas de países desenvolvidos na América Latina, onde existem problemas de pobreza e escassez de capital humano que, segundo ele, sensibilizavam mais os liberais clássicos.
"É muito curioso que o único país da América Latina que fez um experimento profundo e consistente da política econômica neoliberal, que é o Chile, tenha feito esse experimento sob uma ditadura", ressalta ele, em referência ao regime militar liderado por Augusto Pinochet (1973-90), que foi assessorado pelo próprio Friedman e entregou o controle da economia chilena para os Chicago Boys.
Nas últimas décadas e sob regime democrático, o Chile manteve políticas de livre mercado que permitiram atingir um PIB per capita similar ao de países europeus e reduzir os índices de pobreza. Mas o modelo chileno entrou em crise com os movimentos de protesto que eclodiram em 2019 contra a desigualdade e pedindo reformas sociais.
"Com exceção do Chile, o neoliberalismo dos governos latino-americanos foi muito inconsistente e ineficaz, pois não houve reformas neoliberais, para o bem ou para o mal", disse Giannetti da Fonseca.
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