Questão de caráter

Uma olhadinha básica nas negociações das últimas sessões do ano na Câmara e no Senado revela o que move Jair Bolsonaro e seus aliados — uma maioria aliciada não pela boniteza do presidente, mas pelas verbas distribuídas sem transparência nem avaliação de relevância.

Retiraram da sessão agendada para discutir os vetos presidenciais a decisões do Congresso uma medida de amplo alcance social e custo anual de meros R$ 84 milhões: a doação de absorventes a estudantes de baixa renda. E incluíram entre as despesas da Lei Orçamentária Anual (LOA) um pedido de Bolsonaro, encaminhado pelo ministro Paulo Guedes, para aumentar os salários dos policiais federais ao custo estimado de R$ 2,8 bilhões em 2022, ou R$ 11 bilhões em três anos.

Os salários dos servidores federais da linha de frente de serviços à população, em geral de níveis baixos, estão congelados desde 2017 — mas a elite da burocracia, sobretudo a fardada, fala e Bolsonaro escuta. Às meninas pobres ninguém dá ouvidos. Tecnicamente, trata-se do que os economistas chamam de "prioridades alocativas".

Os parlamentares derrubaram outro veto, repondo na LOA a dotação de R$ 5,7 bilhões do Fundo Eleitoral, quase o triplo do proposto pelo governo para os partidos gastarem em campanhas eleitorais.

Este simples confronto entre prioridades define os valores morais dos eleitos para representar a população. Eles esclarecem as razões da folgada dianteira de Lula nas pesquisas de intenção de voto, com chance de eleger-se em primeiro turno, conforme as enquetes do Ipec (ex-Ibope) e do DataFolha. Indica também porque a economia passou a oscilar entre baixo crescimento, em torno de 1% anual, e recessão a cada tentativa de romper a estagnação mantendo a ortodoxia vigente.

A política sem pudor

Mais que a falta de um bom programa econômico e a sua execução com padrão de competência asiática, o obstáculo ao desenvolvimento é de ordem subjetiva, relacionada a questões de caráter e consciência do que forma e tange a cidadania — alguns diriam "vergonha na cara".

Não há meio termo para estas novas despesas quando se sabe que o aumento do Bolsa Família foi pretexto para o populismo eleitoreiro, agravado pelo fato de que o tal do "espaço fiscal" veio do calote de precatórios e da mudança do indexador do teto de gastos para se tirar proveito da aceleração da inflação. É a política sem pudor.

É o que esteve ausente em evento, semana passada, de Bolsonaro na Confederação Nacional da Indústria, em Brasília. Em sua fala final, Bolsonaro elogiou o agronegócio, lembrou a importância da indústria e concluiu destacando que a agricultura é mais importante do que a indústria. Talvez tenha se confundido e achado que estava em outra confederação, a da Agricultura, CNA, não na CNI. Surpreendente foi a reação: supostos industriais na plateia ovacionaram aquela fala.

Dias depois, em São Paulo, ouviu risos e aplausos na Fiesp quando, para se mostrar parceiro do setor privado, admitiu ter mandado pôr na rua a diretoria do Iphan ao saber que uma obra de Luciano Hang, seu amigo, fora embargada devido a "um pedaço de azulejo" achado nas escavações. Confessou prevaricar, e foi aplaudido. Pois é...

Detalhes assim, a humilhação na própria casa, aplausos ao cinismo, o desprezo à condição das meninas pobres, narram um país amoral.

A visão de Antonio Ermírio

Que não se enganem os precipitados: empresários não são bem estes que correm a Brasília ao se depararem com problemas privados ou que clamam por reformas econômicas obsoletas, que espremem o consumidor e roubam competitividade sem devolver benefícios concretos ao país.

Também não discutem nem cenários nem políticas econômicas, quanto mais a empregabilidade dos 171 milhões em idade de trabalhar e o bem-estar geral, quem vai à imprensa alertar para os riscos de tudo o que implique ações públicas mais ativistas e algum planejamento. Nem se trata de análises ideológicas, mas de proteção de carteiras de fundos aplicados em renda fixa e ações.

Defendem o status quo não porque discordem do crescimento movido a investimentos. Desconfiam é da idoneidade dos governantes e de seus políticos arranjados. Mais seguro para os fundos aplicados no giro dos papéis do Tesouro confiar apenas nas receitas das commodities.

Empresário de fato é quem algum dia pagou título em cartório, como me disse Antonio Ermírio de Moraes, então à frente da Votorantim, o maior grupo industrial da América Latina na época. Empresários como ele, que nunca abaixou a cabeça na ditadura, existem, só estão dispersos, talvez abafados pelo temor do "cancelamento" não bem dos bancos, mas dos traders do mercado financeiro.

Empresários conscientes

Ano eleitoral, a economia e sua resultante social em 2022 vão, com sorte, andar de lado. Mas isso apenas se Bolsonaro e os seus parças no Congresso não inventarem moda. Aí, será recessão na veia.

Para 2023 poderá ser diferente, dependendo das eleições e de haver inteligência estratégica dos eleitos para considerar o que um grupo de empresários conscientes e preocupados com o país — como foram em seu tempo Ermírio, Roberto Simonsen, Olavo Setúbal, Amador Aguiar, José Alencar, Mendel Steinbruch, Mário Wallace Simonsen, Walther Moreira Salles, — tem a dizer. Chamaria de um plano de bom-senso.

Prioridade total à educação, da base ao ensino vocacional, tanto quanto à inovação tecnológica direcionada pela descarbonização e pela digitalização dos CPFs e CNPJs, fazendo da onda digital o meio de transformar a economia e as instituições carcomidas do país.

Sem cadastros digitais, gente preparada para manuseá-los e tomarem decisões a partir deles, não se tirará valor do SUS (cada vez mais estratégico), o peso da previdência logo voltará a assombrar, o setor público tenderá a ser mais ônus que bônus, novos negócios tão necessários dificilmente vão despontar, atando-nos ao risco da dependência de commodities, não ao conhecimento aplicado.

Transformar é a direção e começa pela política. Se são tão safos como dizem ser, os políticos devem ao menos desconfiar de que como está não pode ficar.