O país aprovou uma emenda constitucional sem muita discussão, há algum tempo, determinando que o gasto federal não aumentasse acima de uma taxa-teto igual à inflação decorrida, caso contrário perderíamos o controle da inflação e a possibilidade de retomar um crescimento do PIB minimamente adequado. Só que, agora, estamos na iminência de romper com tal compromisso, no meio de uma confusa discussão que envolve fatores outros como o custo da melhor reação à pandemia para os mais carentes, o enfrentamento de outras e relevantes pressões sobre os gastos federais como a relacionada com precatórios judiciais, e a própria mistura de tudo isso com o iminente debate sucessório.
Evitando as partes mais polêmicas, o fato é que, certo ou errado, o teto se tornou algo simplesmente inviável. A pauta de gastos na esfera federal está de tal forma concentrada em despesas obrigatórias (que, por sua prioridade, foram criadas por alguma legislação específica muito difícil de alterar), que, em apenas cinco anos de execução, o teto já quase fez evaporar os gastos não-obrigatórios ou discricionários, únicos que vinham se ajustando, tendo conseguido muito pouco no ajuste dos primeiros. Dado que itens importantes como os investimentos em infraestrutura estão incluídos nos discricionários, é óbvio que o governo não pode continuar investindo quase zero em infraestrutura. Deve-se registrar que o setor público como um todo costumava investir 5% do PIB em infraestrutura no início dos anos oitenta; em 2018 investimos ali apenas 0,7% do PIB, enquanto o setor privado investia em média não mais que 1,1% do PIB o tempo todo. Como vamos crescer sem ampliar a infraestrutura?
Voltando aos gastos obrigatórios, seu crescimento veio, principalmente, por conta das novas prioridades constitucionais sob a reforma de 1988. Graças a elas, criamos uma "grande folha de pagamento", contendo benefícios assistenciais e subsidiados, seja no INSS, seja sob a supervisão de outros órgãos, muitos dos quais antes não existiam, refletindo a nova prioridade máxima à assistência social; à previdência contributiva inclusive servidores públicos; e a pessoal em atividade. Estimo que esse grande item tenha passado de 39% do gasto federal total, em 1987, para 76% em 2018, atendendo a mais da metade da população. As áreas de saúde e educação mantiveram seus pesos pré-1988: 8 e 3%, respectivamente. Assim, por mais que tenhamos conseguido cortar as "demais despesas obrigatórias" em 14 pontos de porcentagem do total, os gastos obrigatórios totais terminaram aumentando de 70 para 93% entre 1987 e 2018. Como cortá-los na "grande folha" sem um grande debate, se eles são tão prioritários?
Para complicar ainda mais a atual gestão financeira, acabam de aparecer novos gastos obrigatórios expressivos para a área federal honrar, como os relacionados com precatórios judiciais — líquidos e certos para pagar, que costumavam, até há pouco, assumir valores em torno de R$ 25 bilhões anuais, e acabam de aparecer com previsão de desembolso de R$ 89 bilhões em 2022. Se juntarmos essa com as demais despesas citadas no primeiro parágrafo que ganharam destaque ultimamente, fica claro que não apenas a exigência do teto dos gastos perdeu completamente seu sentido original imaginado um tempo atrás, como se amontoaram novas razões para descartá-lo como solução relevante.
Para jogar ainda mais lenha na fogueira acima citada, cabe perguntar: e se chegarmos à conclusão de que, no Brasil dos últimos anos, com economia crescendo, em média, a apenas 0,2% ao ano nas duas últimas décadas, é possível que aumentemos os gastos para além do teto sem qualquer efeito relevante sobre a inflação? É claro que os partidários do dogmatismo fiscal permanecerão defendendo o cumprimento do teto dos gastos e perguntando quanto será necessário para cobrir todas as novas despesas e de onde os recursos sairão.
Em quadro tão difícil, não vejo outra saída que não seja financiar as novas e relevantes demandas por recursos públicos via emissão de dívida pública devidamente autorizada em lei, para pagar a parcela dos novos compromissos considerada efetivamente essencial, e depois decidir junto ao mercado e ao Banco Central que parcela desses papéis deverá ser monetizada, evitando pressões adicionais indesejáveis sobre as taxas de juros, como os americanos fizeram em sua crise de 2008. E, é claro, tudo isso sem medo de os novos gastos pressionarem preços, pois a economia, há muito (cerca de 20 anos), está com crescimento médio praticamente zerado. Depois, ver-se-á o que fazer.
Para concluir, a saída é enterrar o teto sem alarde, substituindo-o pela aprovação de outra emenda constitucional que estabeleça um limite de endividamento público para a União, a exemplo do que existe nos Estados Unidos. Esse limite seria fixado inicialmente com folga suficiente para promovermos uma discussão sobre a estrutura do gasto federal acima indicada em tempo razoável e suas ramificações para os orçamentos estaduais e municipais, assunto de que tratarei na minha próxima coluna.