Quem faz e quem desfaz
China, EUA e Brasil têm algo em comum: todos buscam reinventar-se. As duas potências rivais conduzem reformas para seguirem poderosas. Nós reformamos e colhemos estagnação, desfazendo os poucos avanços.
As transformações nos EUA do presidente Joe Biden e na China de Xi Jinping visam a melhorar a distribuição da renda, que atingiu níveis alarmantes em ambos, com crescimento e inovação tecnológica. E nós?
No Brasil de Jair Bolsonaro, governo e Congresso discutem ampliar o Bolsa Família, rebatizado de Auxílio Brasil. A motivação é antes de tudo eleitoreira, não redimir a pobreza nem o desenvolvimento.
O contraste é flagrante com os movimentos na China e nos EUA: em ambos, a reconversão do crescimento visa a aumentar a fatia dos salários no bolo total, cada qual conforme sua orientação ideológica. Na China, com dirigismo estatal sobre as decisões empresariais, em especial dos gigantes de tecnologia. Nos EUA, com laxismo monetário do Fed e fiscal do Tesouro e ativismo sindical em busca do pleno emprego. A via sindical atrai as facções de esquerda dos Democratas de Biden e a direita nacionalista dos Republicanos de Trump, as duas avessas à influência financista ou neoliberal na vida política.
Tais choques e discussões estão anos luz de distância do que atrai a atenção da política, da tecnocracia e da imprensa no Brasil.
Nas duas potências que manipulam os cordéis tanto da geopolítica quantdo da economia e da tecnologia, crescer com equilíbrio social, incorporando a prioridade ambiental, não vem de geração espontânea sem planejamento, a marca registrada do neoliberalismo.
A discussão também vai além de planos simplistas, como transferir renda do topo para baixo via tributação ou endividamento público para atender os mais pobres. O caminho proposto ao Congresso por Biden envolve emissão de dívida recorde, mas ao longo de 10 anos e com foco no investimento em infraestrutura, tecnologia e educação.
Mais que os rótulos de “capitalismo de mercado” aplicado aos EUA e de “capitalismo de Estado” à China, ambos buscam renovar-se pelo pragmatismo, e se perderam quando se levaram pelas ideologias.
Miséria intelectual
Discutir os conceitos do que está por trás do megaprograma de US$ 6 trilhões de gastos públicos nos EUA ou do cerco chinês ao poder de mercado das gigantes de tecnologia, tipo Alibaba/Alipay, e dos grupos vergados por dívidas, como a imobiliária Evergrande, ajuda a entender a miséria intelectual da macroeconomia no Brasil.
Talvez a obsessão da estabilidade fiscal, o pânico da inflação, a criminalização do papel Estado como ente coordenador de projetos e programas nacionais estejam para nós como a ortodoxia de mercado e o nacionalismo econômico estão para EUA e China, respectivamente.
Cada qual busca saídas para suas crises. A China, com o que Xi batizou de “prosperidade comum”; os EUA, com o “capitalismo com propósito”, pensamento nascido entre grandes corporações, que resume o que Trump prometeu fazer e fracassou e Biden retomou, com a oposição dos libertários e reacionários da mesma base trumpista.
Nem um bom lema nos assiste na tragicomédia de um governo inepto e capturado pelo que há de mais retrógrado na política e na economia.
O escrutínio do que fazem os países mais bem-sucedidos é o meio de afastar ficções, como a ideia de que o Estado é sempre ruim, quando perversa é nossa estrutura e governança, não a sua essencialidade.
Distorções a enfrentar
Nos EUA, o programa Democrata enseja o investimento público, a ser bancado com aumento de imposto dos mais ricos (acima de US$ 400 mil ao ano) e emissão de dívida, e programas sociais (assistência à primeira infância, entre outros) focalizados, para recuperar o produto perdido por décadas, ao ser desviado pelas empresas locais para países com custos baixos e sem rigor ambiental, como a China.
Na China, o crescimento desenfreado, puxado pelas multinacionais atraídas pela abertura comercial e o vigoroso programa de aportes estatais em logística e energia, produziu o maior salto da história de criação de riqueza e eliminação da pobreza. Em 40 anos, a China promoveu 700 milhões de pessoas do piso social à classe média.
Em ambos, o crescimento gerou distorções. Nos EUA, a classe média estagnou, a pobreza ressurgiu, a logística envelheceu, o progresso tecnológico desacelerou, o ressentimento social aflorou. Na China, desigualdade, corrupção, revoltas sociais, a mão pesada do estado.
Aqui, o governo enxergou a pobreza depois de a pandemia destampá-la, levando o ministro Paulo Guedes a anunciar a descoberta do que chamou de “invisíveis”, a massa de empregados informais, mas faltou o básico: planejamento, programa e experiência de gestão pública.
O que importa discutir
Hoje, importa discutir, mais que os cálculos eleitorais da eleição que se avizinha, as razões de o país regredir em relação ao resto do mundo, a indústria encolher sua parte no PIB desde os anos 1980, a economia não gerar empregos para acomodar a expansão demográfica e poder pagar salários crescentemente acima do nível de subsistência.
Tudo se passa como se bastasse o dinamismo das commodities, que tem sido suficiente para prover as importações de manufaturados, os encargos da dívida externa e a remessa de lucro das multinacionais, além da solvência da dívida pública. Política econômica não é isso, no entanto. Trata-se apenas de um plano de contas, e bem ruinzinho.
Faltam reformas, diriam os encantados com os EUA de ontem, quando abandonaram as questões sociais em favor da atividade econômica não regulamentada e neutralizaram as instituições destinadas a proteger a comunidade, como conta Scott Galloway, da escola de negócios da Universidade de Nova York. Isso lá já é página virada desde Trump.
A verdade incômoda é que, sem crescimento possante, as reformas para destravar os negócios servem só para compensar a lucratividade frustrada pelo mercado estagnado e com viés regressivo, ao não resultar em expansão da produtividade. Prioridade é o crescimento do PIB, não a estabilidade, que implica imobilismo. Se faltar essa noção aos governantes eleitos em outubro de 2022, o desastre atual deixará saudades.