Tchau, queridos
Em clima de fim de festa, a política em Brasília, do governo aos líderes da fragmentada coalizão parlamentar que apoia o presidente Jair Bolsonaro, busca pescar os minguados recursos disponíveis na lei orçamentária de 2022 sob a capa da maior proteção aos pobres.
O título principal de tais movimentos fala do sucessor do Bolsa Família, o Auxílio Brasil — um novo nome, adicionado a subprogramas que vão dificultar o acesso aos dinheiros distribuídos, que omite o que está por trás: minuetos da contabilidade pública para gerar as verbas para as “emendas do relator”, que é como o comando das Casas do Congresso, especialmente da Câmara, arregimenta votos entre os partidos para aprovar projetos de interesse privado e do governo.
É feio admitir que se quer levar ao fogo a responsabilidade fiscal para fornir o chamado “orçamento secreto” e, de quebra, para dobrar a dotação do fundo partidário de 2022, hoje de R$ 2,5 bilhões. Soa melhor alegar que o beiço nos precatórios e a quebra da regra do teto de despesas orçamentárias visa minorar a fome e ajudar milhões de “invisíveis” — o neologismo para o emprego informal, que sempre representou, ao menos, metade de toda a força de trabalho do país.
Se a intenção de eliminar a pobreza fosse séria e não sorriso de candidato em campanha eleitoral, todo o esforço seria no sentido do crescimento econômico que produz empregos, não de programas feitos para mitigar o fracasso de política econômica sem conteúdo social.
Governos e partidos mal avaliados pelo eleitor recorrem ao velho expediente dos programas de transferência de renda, o que os faz serem chamados de populistas, para tentarem se salvar em eleições.
Nada a ver com o Bolsa Família, criado em 2003 pelo governo Lula, que consolidou e ampliou vários programas dispersos da gestão FHC. Não tinham intenções eleitorais, já que foram lançados como iniciativas complementares ao resultado do crescimento econômico regular.
É assim que o auxílio emergencial se bifurca com o Bolsa Família e ambos viram Auxílio Brasil — programa necessário, mas condicionado aos fins eleitoreiros do governante e de seus apoiadores no Congresso. O jeito certo de atender os pobres seria cortar gastos ociosos como os distribuídos sob a forma de emendas parlamentares e acabar com desonerações tributárias que perderam propósito. O jeito errado é o que se quer com a PEC que fatia o pagamento dos precatórios e infla a derrama de emendas com baixíssimo retorno econômico e social.
Reformas nada sinceras
O empresariado começou a estranhar as intenções dos líderes do PP e do PL, principais sustentáculos de Bolsonaro no Congresso e com os quais sempre se relacionaram bem, durante a tramitação do pacote do Imposto de Renda, que complica o já difícil sistema tributário a pretexto de reformá-lo. Na verdade, pretende-se tributar o lucro distribuído, chamado de dividendo, e assim bancar o programa social prometido a Bolsonaro e o tal orçamento à margem de controles.
Se fosse sincera a vontade de desatar o cipoal tributário, haveria uma discussão conjunta com a proposta que substitui a tributação do consumo pelo Imposto sobre Valor Adicionado único. Mas o presidente da Câmara, Arthur Lira, trocou a proposta que lá tramitava pela do IR, que parou no Senado, onde há outra variante dessa reforma.
Não se mudam impostos apenas para arrecadar mais, se a carga tributária total, de 34% do PIB, já é recorde entre as economias emergentes. Foi depois que o Senado parou o mal-ajambrado pacote do IR que o ministro Paulo Guedes veio com a metáfora do meteoro, ao divulgar que as dívidas judiciais da União, ou precatórios, a pagar em 2022 chegam a R$ 89 bilhões. Elas já eram sabidas, mas, do jeito que ele disse, pôs em cena a ideia do fatiamento desses pagamentos, o que implica mudar a Constituição. Essa é a confusão.
Nosso drama é circular
No fundo, desde a grande recessão de 2015-16 os governos jogam na defesa, amparados na ideia de que o Estado é mau e hostil ao livre mercado. Isso vem de longe e encontrou seu ápice neste governo, em que o ministro da Economia atribui o baixo crescimento do PIB e a decadência da renda per capita nos últimos 40 anos aos governos de orientação social-democrata, quando não à própria Constituição.
Contraditoriamente, é ao programa eminentemente social do Bolsa Família repaginado que o presidente recorre para ter chance de se reeleger. Ou é o que diz Guedes ou não é. Mas vamos em frente.
Sempre foi assim. Só que hoje acabou a fartura da arrecadação dos impostos, o contribuinte não quer ouvir falar em mais tributos e o deficit fiscal é recorrente desde 2014. Eles são cobertos por meio de créditos extraordinários aprovados pelo Congresso (e cada vez que o presidente os pede se enfraquece outro tanto), gerando mais papéis de dívida do Tesouro pelos quais o mercado pressiona o Banco Central a pagar mais juro, que trava o crescimento, produz pobreza etc. Esse é o drama, e a volta da inflação é seu pano de fundo.
Não haverá condescendência
Todos correm em Brasília por que, para serem aplicadas em 2022, as mudanças devem estar aprovadas este ano. Não é simples. Alterar a Constituição exige duas votações na Câmara e 308 votos, e mais duas no Senado e 49 senadores a favor. Mas, com um naco votando ao ritmo dos pagamentos das tais emendas, o processo se viciou, pois sempre há os insatisfeitos. Com a PEC dos precatórios está assim.
Por precaução, está pronto outro recurso: o governo pede mais um crédito extraordinário, o Congresso aprova, o dinheiro do Auxílio Brasil fica garantido até o fim de 2022 e os precatórios são todos pagos (R$ 89 bilhões) como já consta da proposta orçamentária. E as “emendas do relator”, o fundão eleitoral? Contas são feitas para que caiba tudo. Ou passa a PEC ou vão fazer a gambiarra.
Dispensa elaboração sofisticada a conclusão de que não há política econômica em nada disso. Se houver uma que mereça o nome, será em 2023. Ainda assim, somente se o empresariado tomar a iniciativa, pois afora ideias dispersas os candidatos não se atreveram a formulá-la.
E dificilmente o farão de peito aberto, tamanha a disfunção do que aguarda o futuro presidente. Ela vai acumular-se aos imperativos do clima que vão emergir da cúpula de Glasgow. Não se trata de obra de esquerdistas, como disse o vice-presidente Hamilton Mourão, mas de grandes empresas e bancos globais. Nesta urgência, que se atrela às disrupções tecnológicas, o mundo não será condescendente com os medíocres, os negacionistas e os desinformados. O que fazer? Já é um bom começo começar repelindo improvisos e cambalachos políticos.
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