O presidente Jair Bolsonaro iria anunciar nesta terça-feira (19/10) o novo Auxílio Brasil com valor de R$ 400, para substituir o Bolsa Família em 2022, ano de eleições.
Pouco antes do horário previsto, porém, o Ministério da Cidadania informou que a cerimônia, que seria realizada no Palácio do Planalto, estava cancelada e sem previsão de nova data.
Enquanto os beneficiários do Bolsa Família seguem no escuro sobre o que será da sua renda a partir de novembro, quando chega ao fim o auxílio emergencial pago durante a pandemia do coronavírus, a desistência de Bolsonaro é mais um capítulo de uma série de tentativas frustradas do governo de reformular o programa social gestado nos anos Lula.
O cancelamento do anúncio foi uma resposta à reação extremamente negativa do agentes do mercado financeiro à proposta. Na tarde desta terça-feira, a bolsa de valores chegou a cair mais de 3% e o dólar superou os R$ 5,60.
A perspectiva de que parte dos R$ 400 previstos para o novo auxílio venha de recursos fora do teto de gastos foi o motivo desse profundo mau humor dos mercados.
Aprovado em 2016, o teto de gastos limita o crescimento da despesa do governo de cada ano à variação da inflação do ano anterior. A ideia da regra é limitar o crescimento descontrolado da dívida pública, mas as tentativas do governo de furar a lei têm sido frequentes.
Segundo economistas, o possível descontrole das contas públicas que seria resultado desse gasto fora do teto piora as perspectivas para a inflação futura, o que pode fazer com que o Banco Central tenha que elevar ainda mais os juros para conter a alta de preços.
Com mais inflação e mais juros, as empresas tendem a retrair investimentos, prejudicando o crescimento do PIB e, consequentemente, a geração de empregos.
"É um enorme equívoco o governo e o Congresso insistirem em falsas soluções, usando como escudo os mais vulneráveis para extrair benefícios privados", diz Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da RPS Capital e ex-diretor da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado federal. Ele avalia, assim como os demais economistas, que o governo Bolsonaro está fazendo as mudanças de olho nas eleições de 2022.
"Com a perda do poder de compra da população, gerada pelo aumento da inflação que vai resultar da disparada do dólar, o governo está dando com uma mão e tirando com a outra. As pessoas não vão ter o benefício que está sendo vendido", diz o analista.
O que se sabe sobre o novo Auxílio Brasil
O presidente Bolsonaro enviou, em 10 de agosto, uma Medida Provisória com a criação do Auxílio Brasil. Por ser uma Medida Provisória, o texto passa a valer imediatamente, mas ainda terá que passar por votação no Congresso em até 120 dias para que se torne definitivo.
A expectativa do governo era começar a pagar o benefício já em novembro, posto que a última parcela do auxílio emergencial já está sendo paga. Mas ainda não há certeza se será possível viabilizar o novo benefício até lá e há possibilidade de o auxílio ser prorrogado novamente.
Incialmente, o governo planejava pagar R$ 300 de Auxílio Brasil, para 17 milhões de pessoas. O Bolsa Família atende atualmente 14,6 milhões, com um valor médio de R$ 190.
Para bancar a diferença em novembro e dezembro desse ano, o governo aumentou em setembro a alíquota do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras), um imposto que incide sobre operações como empréstimos, compra de moedas, contratações de seguros e investimentos, de pessoas físicas e jurídicas.
Com esse o aumento de imposto, o governo previu arrecadar R$ 1,6 bilhão, que complementaria R$ 7,7 bilhões em recursos não utilizados do Bolsa Família, somando os R$ 9,4 bilhões estimados como necessários para pagar o Auxílio Brasil de R$ 300 reais por dois meses.
Para 2022, o financiamento do benefício ainda estava em aberto, dependendo de medidas incertas como a aprovação da PEC dos Precatórios, que adiaria o pagamento pelo governo de dívidas com decisão judicial definitiva; e a reforma tributária, que prevê a taxação de lucros e dividendos, o que também geraria um aumento de receita.
No entanto, candidato à reeleição em 2022, Bolsonaro determinou que o auxílio emergencial deveria ter valor de R$ 400, e não R$ 300 como previsto inicialmente. Assim, o novo benefício teria valor superior ao auxílio emergencial, que atualmente é de R$ 150, R$ 250 ou R$ 375.
Para acomodar o gasto extra em 2022, seria necessário uma despesa fora do teto de gastos de R$ 30 bilhões, conforme noticiou o jornal O Estado de S. Paulo. Foi esse gasto fora do teto que azedou o humor dos mercados.
Terremoto no mercado
"O mercado reagiu mal porque é uma destruição do arcabouço fiscal atual que nós temos, que é o teto de gastos", diz Barros, da RPS Capital, referindo-se ao conjunto de regras criadas para tentar manter a estabilidade das contas públicas.
"Ao invés de equilibrar a responsabilidade fiscal com a social, o que é perfeitamente possível, o governo está usando as pessoas mais vulneráveis para atender a interesses questionáveis, fragilizando as contas públicas", acrescenta o analista.
Ao mirar a reeleição de Bolsonaro, em detrimento da saúde das contas públicas, o mercado passa a não ter segurança quanto à trajetória futura da dívida pública do país. Com isso, aumenta a percepção de risco em relação ao Brasil, o que se reflete em alta da curva de juros futuros e do dólar.
"O câmbio mais desvalorizado contamina a inflação e isso retira poder de compra da população", diz Barros.
O câmbio afeta, por exemplo, o preço dos combustíveis, já que o petróleo é cotado em dólar. Pesa também sobre os alimentos, com o aumento da exportação que reduz a oferta interna, e sobre os custos industriais, já que muitos insumos da nossa indústria são importados.
"A curva de juros mais inclinada piora as condições de investimento produtivo na economia, porque a decisão de investir não é dada pela Selic de hoje, mas pela curva de juros futuros. Quando tem uma decisão política tão desastrada como essa, isso afeta portanto o investimento da economia real e a geração de emprego e renda", explica o analista.
Ainda conforme Barros, a perspectiva de inflação maior pode fazer o Banco Central ter de aumentar mais a Selic, o que tende a funcionar também como um freio para os investimentos e o consumo.
Em resumo, diz o economista, ao tentar dar um benefício maior aos mais pobres bagunçando as contas públicas, são justamente os mais pobres quem podem sair mais prejudicados. "O saldo líquido é negativo, estão usando os vulneráveis como escudo. É uma covardia isso."
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