Até hoje, o governo não reconheceu devidamente a necessidade de adotar, frente à pandemia, uma visão apoiada em base científica, como a que tem predominado na maioria dos países, a ponto de o país ter, atualmente, um dos maiores números de mortes por habitantes.
O drama desse tipo de crise é que, mesmo sem tal postura negacionista, seu enfrentamento para evitar uma altíssima contaminação e a decorrente mortalidade requer que a população, especialmente a parcela mais necessitada, tenha de se submeter a um isolamento forçado, mesmo sem condições de se sustentar minimamente. Enquanto isso, em sua visão ortodoxa exacerbada, o governo tem colocado todo tipo de dificuldade para sustentar um mínimo de renda para as pessoas que efetivamente precisam de ajuda.
Por outro lado, como mais adiante a pandemia se esgotará, os investimentos em infraestrutura terão de ter um lugar de peso nas propostas para o novo governo, diante da desabada desse item nas últimas décadas e, por consequência, do crescimento potencial do PIB. A não ser que continuemos insistindo na tese de que no setor público não há dinheiro para isso — e ponto final; que é preciso ter paciência para se enxergar o ingresso do setor privado no setor; e/ou se acredite que a economia tem como crescer sem ampliar sua capacidade de produção em setores críticos como esse, cujos serviços não podem ser trazidos do exterior (por exemplo, pode-se importar um aeroporto?).
Imagino que a queda do estoque de infraestrutura, que também ocorreu no seio dos nossos ricos vizinhos ao norte nas últimas décadas, tenha sido em geral grande e proporcionalmente mais alta do que por aqui, tanto que nos EUA se fala de um plano de reconstrução da infraestrutura de não sei quantos trilhões de dólares, mas sem sentir a necessidade de explicar em detalhe como esse plano será financiado. Ou seja, lá é questão para posterior elaboração como financiar algo que é reconhecidamente indispensável, e que só os governos conseguem liderar.
Enquanto isso, em franca desabada de popularidade, seja pelos erros ligados à pandemia, seja pela péssima condução da economia, nosso governo ainda não mostrou a cara dos seus planos com maior firmeza, além dos chavões ultrapassados que estamos cansados de ouvir. Deveria saber que, se investirmos mais e melhor em infraestrutura, mais crescerá o PIB e menor será a desigualdade de renda. Querem melhor razão para jogar todas as fichas na infraestrutura?
Só que, como acima sinalizado, a crise fiscal derrubou nossos investimentos públicos ao chão, e, para completar, por paradoxal que pareça, existe ainda um claro viés anti-investimento privado em infraestrutura disseminado por aí afora, especialmente dentro da própria ação do setor público, algo que precisa ser combatido permanentemente e com bastante força.
A partir daí, dirão os xiitas do ajuste fiscal local: como fazer isso sem deixar de cumprir o “teto de gastos”? De fato, não dá. Até porque os investimentos da União, após anos de contenção explícita, já encostavam no zero por volta da aprovação desse instrumento maldito. Em 1987, às vésperas da nova Carta, 16% do gasto total era investimento. Em 2018, esse número tinha caído para 2,8%. Se depender da gestão Guedes, o zero está aí na frente.
Se não há como investir no público e se existe um viés contrário ao privado, o que fazer? Claro que essas duas excrescências devem ser combatidas, e, mais que isso, faz todo o sentido o setor público emitir dívida, em um sentido amplo, para financiar projetos de alta rentabilidade para a sociedade como um todo. O que acham que o Biden vai fazer nos EUA? Nada obstante, para não contrariar demasiadamente os xiitas que dominam o pensamento econômico no nosso país, tenho defendido, antes de mais nada, o casamento do ajuste previdenciário com a retomada dos investimentos públicos em infraestrutura, começando de baixo para cima, ou seja, dos municípios para os estados, e, por último, para a União.
Note-se que, dos três grupos em que, por idade, se pode dividir o conjunto dos entes públicos brasileiros, naquele que inclui os regimes próprios criados mais recentemente e no do meio, predominam municípios. Já no terceiro, mais antigo, estão as administrações de maior peso e também em situação mais complicada, incluindo a grande maioria dos estados, onde os desajustes são maiores e as soluções mais demoradas. Notem que os municípios mais bem comportados já acumularam R$ 200 bilhões em seus fundos e podem redirecionar seu uso hoje em títulos federais para investimentos produtivos.
Os dirigentes do estado mais rico, São Paulo, e de um dos mais pobres, o meu Piauí, parecem ter percebido isso com maior clareza. Entre outras coisas, o primeiro lançou o programa Desenvolve Municípios contendo não só financiamentos, como apoio à reestruturação previdenciária, e o segundo deverá ser o primeiro estado a apresentar uma previdência totalmente equacionada. São eles os que estão entre os mais próximos de fazer o certo.
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