A Câmara dos Deputados aprovou, a toque de caixa, uma minirreforma trabalhista, contrabandeada na medida provisória enviada pelo governo para prorrogar o Benefício Emergencial (BEm) e reduzir salários e jornada de trabalho. Mas o texto saiu do Planalto com 35 artigos. Engordou na Câmara dos Deputados para 95, recheado de emendas. Nelas, foram inseridos jabutis que criaram vários regimes de contratação em que as empresas se livram de pagar o FGTS e o INSS. Os trabalhadores vão ficar até sem o auxílio de acidente de trabalho. Para especialistas, o texto não passa pelo Senado.
Donne Pisco, sócio-fundador do Pisco & Rodrigues Advogados, afirma que a medida é boa para o empregador porque desonera a folha de pagamento. Não para o trabalhador, que ficará totalmente exposto e vulnerável. “Não terá proteção em caso de desemprego involuntário, não terá direito ao seguro-desemprego, não será beneficiário de auxílio-doença, aposentadoria por invalidez pensão por morte, nem contabilizará o tempo para fins de aposentadoria. Além disso, a MP cria dentro da empresa duas categorias de trabalhadores com direitos distintos, apesar de poderem exercer as mesmas funções.”
Pisco cita, ainda, que o instrumento reduz a formação do saldo do FGTS e limita a indenização, na hipótese de demissão sem justa causa. “Entendemos que a simples desoneração da folha de pagamento não gera abertura de novas vagas de trabalho de maneira a impactar as taxas de desemprego”, afirma Donne Pisco. A MP tem também várias irregularidades, garante o juiz Thiago Melosi Sória, do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2) e da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT). “O STF já decidiu em julgamento de Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI 5.127), em 2015, que somente é possível ao Congresso alterar uma MP se as emendas parlamentares guardarem ‘pertinência temática’ com o texto original”, explica.
O ato de inserir na MP dispositivos alheios à matéria foi chamado de ‘contrabando legislativo’ pelo STF (conhecidos por ‘jabutis’), diz Sória. “É um meio malicioso de driblar o processo legislativo”, reforça o juiz. Ele cita como “exemplos gritantes”, por não terem nenhuma relação com o tema original, as alterações de regras da justiça gratuita; limitações de imposição de multas pelos auditores fiscais do trabalho; alterações de jornada de trabalho em minas de subsolos; e criação de um tipo de hora extra “de segunda categoria”, com adicional de 20%, em vez de 50%, para todos os profissionais que têm jornadas de trabalho legais reduzidas.
O juiz destaca, ainda, como inconstitucionalidades, a criação do programa Primeira oportunidade e reinserção no emprego (Priore), para pessoas de 18 a 29 anos em busca do primeiro emprego e maiores de 55 anos desempregados nos últimos 12 meses, com redução de direitos trabalhistas. E também a criação do Regime especial de trabalho incentivado, qualificação e inclusão produtiva (Requipe), para contratação sem vínculo de emprego e qualificação de pessoas de 18 a 29 anos, pessoas de qualquer idade desempregadas há mais de 2 anos ou beneficiários de programas federais de transferência de renda, com recebimento de auxílio e bolsa, em vez de salário.
Aposentadoria
Cristina Buchignani, sócia da área trabalhista do Costa Tavares Paes Advogados, assinala que o BEm foi instituído para minimizar os efeitos da pandemia, e já garantia a possibilidade de suspensão do contrato de trabalho e a redução de jornada e salário, com participação do governo no custeio do benefício. “Outras questões abordadas pelo texto, que notoriamente não se coadunam com o objetivo e a provisoriedade das dificuldades impostas pela covid, certamente, se aprovadas, poderão ter a respectiva constitucionalidade submetida à apreciação judicial”, reforça.
Para a advogada, fomentar a inserção de certos grupos de pessoas no mercado de trabalho degradado pelos efeitos da pandemia, enquanto durarem, a exemplo dos programas Priore e Requip, com incentivos, são medidas positivas. “Mas não se pode permitir que, a esse título, se imponha a precarização e o retrocesso às relações de trabalho e emprego”, destaca Cristina. As empresas que contratarem pelo Priore poderão reduzir a alíquota do FGTS de 8% para 2% no caso de microempresa, de 4%, para empresas de pequeno porte e de 6%, para as demais.
Um destaque ao texto, acrescentado pelos parlamentares, determinou que as empresas participantes do programa deixarão de ter a obrigatoriedade de depositar a contribuição previdenciária ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Atualmente, ela é descontada da folha de pagamento de funcionários com carteira assinada. A mudança tem impacto direto na aposentadoria, pois a tendência, dizem especialistas, é de que os trabalhadores parem de contribuir com a Previdência Social e demorem mais para se aposentar.
“A MP diz que, durante esse período de suspensão do contrato de trabalho, o segurado pode contribuir na qualidade de segurado facultativo, o que é uma absoluta incongruência tendo em vista que esse trabalhador está sem renda. A manutenção desse trabalhador ao sistema de Previdência é onerosa”, afirma Leandro Madureira, advogado especialista em direito previdenciário e sócio do escritório Mauro Menezes & Advogados.
Na opinião de Luiz Gustavo Bertolini, especialista em direito previdenciário e sócio do escritório Aith, Badari e Luchin Advogados, a maior parte dos brasileiros não tem hoje planejamento e conhecimento previdenciário o suficiente para optar pela contribuição facultativa após ela deixar de ser automática.
“A população, de forma geral, desconhece os seus direitos previdenciários e a importância do recolhimento para o INSS. O trabalhador (com o contrato suspenso) provavelmente destinará a renda para as despesas do dia a dia, tais como a alimentação, água, energia elétrica e aluguel, não sobrando para os recolhimentos previdenciários. Ele se dará conta do prejuízo somente no momento de se aposentar”, alerta Bertolini.
O especialista lembra que também há um limite de período pelo qual os segurados podem interromper a contribuição e manter a cobertura do INSS. Em regra, é possível ficar sem contribuir, em média, por até 12 meses sem perder a chamada “qualidade de segurado”. O prazo é de apenas seis meses para trabalhadores que fazem a contribuição na modalidade facultativa.