Com a aceleração da vacinação na maior parte do país, os brasileiros já começam a vislumbrar uma luz no fim do túnel da pandemia do coronavírus.
Diante da perspectiva de gradual volta à normalidade, espera-se que a taxa de desemprego - que se manteve no trimestre encerrado em abril no nível recorde de 14,7% - possa voltar a cair, e parte dos 14,8 milhões de desempregados e 6 milhões de desalentados (pessoas que desistiram de procurar emprego) consigam se recolocar no mercado de trabalho.
No entanto, mesmo quando a crise passar e a economia voltar à normalidade, o Brasil não deve registrar uma taxa de desemprego inferior a cerca de 10%, avaliam analistas, o que significa que aproximadamente 10 milhões de pessoas seguirão desocupadas.
Isso porque essa seria a chamada taxa de desemprego de equilíbrio do país, pelas contas dos economistas.
Nosso desemprego "natural" é mais alto do que o de países desenvolvidos, em grande medida devido ao baixo nível de formação da mão de obra, alto índice de rotatividade e informalidade, e elevado custo de contratação dos trabalhadores, dizem os especialistas.
"Nossa infeliz realidade é de um pleno emprego em que quase 10% da população tem que estar desempregada para que a situação seja considerada estável ao longo do tempo", observa Braulio Borges, economista sênior da LCA Consultores e pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).
"E essa taxa de equilíbrio não quer dizer que a economia vai naturalmente, quase que por inércia, convergir para lá. Pode demorar muito tempo, se a gente deixar os mercados agirem. É preciso política econômica ativa [para reduzir o desemprego]", defende.
Desemprego de equilíbrio
Os economistas consideram que a taxa de desemprego de equilíbrio de um país é aquela em que o nível de emprego não contribui para acelerar a inflação. Ela é chamada no jargão econômico de Nairu (non-accelerating inflation rate of unemployment, em inglês).
"Quando a taxa de desemprego está acima do nível de equilíbrio, isso significa que o mercado de trabalho está num momento ruim e há menor pressão no custo de trabalho", explica Victor Kayo, economista da MCM Consultores.
"Num mercado de trabalho deteriorado, os trabalhadores têm menor poder de barganha e menos capacidade para exigir salários melhores. Com essa menor pressão de custos para as empresas, é menor a pressão inflacionária", acrescenta.
Na situação contrária, quando a taxa de desemprego fica abaixo do nível de equilíbrio, os trabalhadores têm mais força para pressionar por melhores salários. Com maior renda, demandam mais produtos e serviços. Já os empresários repassam o aumento de custo com salários aos preços. Os dois movimentos contribuem para acelerar a inflação.
O leitor deve estar se perguntando: mas então o que diabos está acontecendo no Brasil nesse momento? Por que, com um recorde de 14,8 milhões de desempregados, os preços no supermercado não param de subir?
É que a inflação no país atualmente não está sendo puxada por uma demanda aquecida por parte dos consumidores, mas por questões que afetam a oferta dos produtos, como a alta do preço das commodities, a desvalorização do real em relação ao dólar e, mais recentemente, a falta de chuvas que puxou para cima o preço da energia elétrica.
Assim, o Brasil vive atualmente o pior cenário possível: desemprego alto e inflação também.
Como pode um 'pleno emprego' com 10% de desempregados?
"Quando a gente fala de 'pleno emprego', as pessoas naturalmente pensam numa taxa de desemprego igual a zero. Não é isso", explica Borges. "Na maior parte dos países, essa é uma taxa positiva, porque em qualquer momento do tempo há pessoas procurando emprego."
O economista da LCA estima que, no Brasil, essa taxa esteja atualmente em 9,5%, mesma estimativa da gestora de recursos Mauá Capital. Já o Itaú Unibanco calcula que a taxa esteja próxima de 10% e a MCM Consultores, em 10,7%.
Mas o que explica esse "pleno emprego" com um nível tão alto de desempregados?
"A qualificação média da mão de obra no Brasil é muito baixa, não só em termos de anos de estudo - onde o país evoluiu muito nas últimas décadas -, mas na qualidade do ensino", diz o economista da LCA e pesquisador do Ibre-FGV.
"Além disso, como há muita rotatividade no mercado de trabalho, isso atrapalha o acúmulo de capital humano no ambiente de trabalho, porque capital humano não é só estudo na escola e na universidade, mas se adquire também trabalhando, interagindo com outras pessoas e executando tarefas mais específicas."
Borges cita ainda o elevado índice de informalidade da mão de obra e a ausência de uma política ativa de requalificação de trabalhadores no Brasil.
"Países nórdicos, por exemplo, gastam 1,5%, 2% do PIB [Produto Interno Bruto] todos os anos para requalificar mão de obra, pois eles estão conscientes de que as tarefas exigidas pelas empresas estão mudando o tempo todo e é preciso adaptar a mão de obra para isso", afirma.
Mercado de trabalho 'engessado'
Para Marco Antônio Cavalcanti, diretor adjunto do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), um outro fator que pesa para que o desemprego estrutural do país seja tão elevado é a rigidez da legislação trabalhista brasileira.
"Temos um mercado de trabalho muito engessado. Apesar de termos tido uma reforma trabalhista recente, que tentou flexibilizar as relações de trabalho, elas continuam muito rígidas, isso por si só tende a gerar uma taxa de desemprego maior", opina o economista.
"Isso tudo se reflete no nível de emprego de equilíbrio. O custo do trabalho é muito alto no Brasil, somando o salário e todas as contribuições que o empregador tem que pagar."
Luka Barbosa, economista do Itaú, por sua vez, avalia que tanto o baixo nível educacional, como o alto custo do trabalho explicam nosso desemprego estrutural elevado.
"Se você tem um nível de educação melhor na sociedade como um todo, você tem mais pessoas que estão aptas a serem incorporadas no mercado de trabalho, então o desemprego de equilíbrio tende a ser mais baixo", afirma.
"Por outro lado, se o salário mínimo é muito próximo do salário médio da economia, isso tende a gerar uma taxa de desemprego mais alta, porque é possível contratar mais gente se o salário mínimo for mais baixo", acredita.
Por que a reforma trabalhista de 2018 não reduziu o desemprego estrutural?
Em 2018, após a entrada em vigor da reforma trabalhista aprovada durante o governo Michel Temer (MDB), diversos economistas diziam que a mudança contribuiria para reduzir a taxa de desemprego estrutural do Brasil.
A reforma, que entrou em vigor em novembro do ano anterior, trouxe mudanças como a regulamentação do trabalho temporário e intermitente, e ampliou as possiblidades de terceirização de atividades.
No entanto, passados quase quatro anos da alteração da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), as estimativas dos economistas para a taxa de desemprego de equilíbrio do Brasil em quase nada mudaram. Questionados sobre isso, os analistas argumentam que "ainda é cedo" para avaliar os efeitos da reforma.
"É muito cedo ainda para concluir algo", diz Barbosa, do Itaú. "A reforma trabalhista vai sim na direção de reduzir a taxa de desemprego de equilíbrio, mas é muito difícil precisar o quanto ela reduziu. É uma coisa que a gente vai ver depois do fato ocorrer", argumenta.
'Minirreforma' trabalhista em discussão na Câmara
No momento atual, a Câmara dos Deputados analisa um projeto de incentivo ao primeiro emprego para jovens de 18 a 29 anos e de estímulo à contratação de maiores de 55 anos desempregados há mais de 12 meses.
O Priore (Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego) foi incluído pelo deputado Christino Áureo (PP-RJ) na medida provisória que recriou o BEm em 2021 - benefício emergencial para quem teve jornada reduzida durante a pandemia.
Pelo projeto, o governo pagaria um bônus no salário, mas o empregado receberia um FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) menor. A alíquota mensal, que normalmente é de 8%, cairia para 2% (para microempresas), 4% (empresas de pequeno porte) e 6% (demais empresas). O objetivo é reduzir o custo de contratação para os empresários.
As mudanças incluídas pelo deputado Áureo estão sendo consideradas uma "minirreforma" trabalhista e vão na linha da proposta de estímulo ao emprego para jovens apresentada pelo ministro da Economia Paulo Guedes em 2019, que perdeu a validade no Congresso.
Novamente, os economistas argumentam que a medida pode contribuir para reduzir a taxa de desemprego de equilíbrio do país.
"Se conseguirmos avançar na direção de um mercado de trabalho mais flexível e reduzir o custo do trabalho, a tendência é termos um desemprego menor", diz Cavalcanti, do Ipea.
Já a oposição vê no projeto uma tentativa de retirar direitos dos trabalhadores.
"É como se essas trabalhadoras e trabalhadores fossem uma parcela inferior da sociedade que não faz jus aos direitos trabalhistas do restante. Inadmissível nesse momento", afirmou a líder do PSOL na Câmara, Talíria Petrone (RJ), à Folha de S. Paulo.
"Não bastassem todas as restrições e prejuízos temporários impostos pela pandemia, a base do governo Bolsonaro ainda quer se aproveitar desse momento de elevado desemprego e fragilidade dos trabalhadores para fazer uma nova reforma trabalhista, que retira de forma permanente ainda mais direitos", disse Alessandro Molon (PSB-RJ), ao mesmo jornal.
O Brasil pode reduzir seu desemprego estrutural?
Segundo os economistas sim, mas não será tarefa fácil - e a pandemia pode atrapalhar.
"O desemprego estrutural elevado está ligado a problemas de longo prazo que só podem ser enfrentados com reformas estruturais", diz Vitor Kayo, da MCM Consultores. "Educação é o principal fator para conseguir melhorar a capacidade das pessoas no mercado de trabalho e conseguir uma taxa de equilíbrio melhor."
Nesse sentido, a pandemia pode atrasar ainda mais esse processo, já que ela provocou uma evasão escolar significativa - em outubro do ano passado, 1,38 milhão de estudantes com idades de 6 a 17 anos (3,8% do total) estavam fora da escola, segundo estudo da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), quase o dobro da média de 2019 (2%).
A crise sanitária também levou muitos jovens a desistir do Ensino Superior, o que fica evidente na queda de 31% nas inscrições para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) este ano. Com 4 milhões de inscritos, o principal exame de acesso à universidade do país atraiu o menor número de interessados desde 2007.
Além da melhora da qualificação da mão da obra, Braulio Borges, da LCA, defende a necessidade de uma política industrial, a exemplo do que tem sido discutido em âmbito internacional por economistas como Daron Acemoglu e Dani Rodrik.
"Eles defendem que só com política industrial serão gerados 'good jobs', bons empregos. Porque não adianta só a economia gerar emprego. Não é uma situação muito estável todo mundo trabalhar de Uber e entregador de aplicativo", diz Borges.
"É preciso gerar empregos que remuneram bem, que tenham uma certa estabilidade de renda. Esse debate econômico recente coloca que a política pública deve se preocupar não só em gerar mais empregos, mas também com a qualidade desses empregos gerados", afirma.
O economista da LCA e do Ibre-FGV cita a proposta que tem sido chamada nos Estados Unidos de "Green New Deal", que é a ideia, defendida por uma parcela do partido Democrata, de se usar a transição para uma economia de baixo carbono, em resposta às mudanças climáticas, como uma oportunidade para gerar empregos de qualidade.
Em outra direção, o economista Luiz Fernando Figueiredo, sócio da Mauá Capital, defende que, para reduzir o desemprego estrutural do país, é preciso diminuir o Estado brasileiro.
"Hoje, no Brasil, o Estado é grande demais e ele acaba pesando muito sobre o resto do país. Uma das razões do desemprego é que um funcionário custa para a empresa em torno de duas vezes o que ele recebe, então é claro que a empresa vai empregar menos pessoas."
Na mesma linha, Marco Antônio Cavalcanti, do Ipea, defende um aprofundamento da reforma trabalhista iniciada em 2018 por Temer.
"É melhor o trabalhador ter emprego com uma série de benefícios, mas isso ficar tão caro que ele não seja contratado, ou ter um emprego com menos direitos, mas ter um salário?", questiona o diretor adjunto do Ipea.
Argumento semelhante foi usado por Bolsonaro em 2018. "Aos poucos, a população vai entendendo que é melhor menos direitos e [mais] emprego do que todos os direitos e desemprego", disse o presidente à época, defendendo a flexibilização das leis trabalhistas como forma de reduzir o desemprego.
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