Uma recuperação desigual, lenta e com possíveis consequências na capacidade futura de produção das crianças hoje afetadas pela distância das salas de aula. São as projeções do economista sergipano Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro sênior do Center for the New South, em entrevista ao Correio, por videoconferência, direto de Washington. Ele alerta para prováveis cicatrizes deixadas pela covid-19 na economia e na população. Para Canuto, elas serão determinantes na definição do potencial de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, que continua estruturalmente baixo.
O especialista em economia internacional ressalta que, durante a pandemia, o consenso das projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial é que “a recuperação está sendo desigual, inclusive, por conta da vacinação”. Ele considera que ao término da crise, o hiato entre países desenvolvidos e emergentes será ainda maior, ao comparar com o período pré-pandemia. Com impactos diretos na renda per capita da população.
O desgaste da imagem do Brasil perante a comunidade internacional também foi destacado por Canuto. As ações equivocadas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) nas pautas ambientais, nos direitos humanos e no combate à pandemia colaboram para a imagem negativa do país. A seguir, os principais trechos da entrevista de Otaviano Canuto ao Correio:
O cenário internacional ficou tenso nos últimos dias por conta da nova variante Delta da covid-19. Isso pode atrapalhar o processo de retomada da economia global, que estava em curso?
É claro que a incerteza em relação aos desdobramentos da pandemia não é o fator principal dessas turbulências. Hoje, o cenário básico predominante é o fato de que o repique de inflação é temporário e ele não está levando a mudanças significativas nas expectativas de médio e longo prazo. Mas o presidente do Fed (Federal Reserve, o banco central norte-americano), Jerome Powell, insistiu que vai avisar quando vai começar (a mudar a atual política monetária) e quando fazer. E alguém está esperando algum sinal disso só na reunião de Jackson Hole de agosto. E, definitivamente, nada disso vai começar a acontecer entre agora e o ano que vem.
E como explicar os choques inflacionários?
O cenário básico continua sendo de restrições de oferta levando à contenção no crescimento econômico com surtos de aumento de preços, mas com baixo risco de que isso vire gargalos que levarão algum tempo para serem resolvidos. É difícil para alguém tentar dizer que pode distinguir bem o que está causando o quê, mas a gente sabe, mais ou menos, que deu um pepino no fornecimento global de semicondutores. Tem fábricas que estão fechadas por falta de chips, até no Brasil. Essa dificuldade das empresas contratarem. Aí tem o argumento de que isso decorreu da generosidade do auxílio-desemprego, que é um fator, mas há outros que explicam parcialmente esse bloqueio na oferta de mão de obra para atender a demanda. Tem o efeito qualitativo de pessoas mais velhas decidindo antecipar a aposentadoria, mas tem muita gente que resolveu mudar de mercado. Tudo isso são hipóteses. Se esse fator de contenção do regresso da força de trabalho tem fundamento, ele desaparece a partir de setembro.
O senhor acha que esse choque das commodities já tem um prazo para acabar? Mas, no Brasil, está tendo um outro ciclo de choques, por conta da crise hídrica que pode agravar esse quadro…
No que diz respeito às commodities, é outra aposta em aberto, porque a realidade varia bastante entre os setores e os tipos de commodities. É preciso lembrar o seguinte: os superciclos acontecem quando há aumentos significativos de demanda e oferta, incapazes de responder imediatamente à altura. Todos os superciclos de commodities têm isso na base. Na questão do petróleo, não há insuficiência de capacidade instalada para atingir a demanda na oferta e o acordo da Opep (cartel dos produtores) regula a produção. No caso dos alimentos, as opiniões se dividem porque, aparentemente, a resposta da produção agrícola americana neste ano não vai permitir uma alta explosiva nos preços. A grande incógnita é a nova infraestrutura verde proposta por Joe Biden (presidente dos EUA) que tem a ver com o grande grupo de commodities minerais como cobre, plutônio, terras raras, e assim por diante.
Mas na sua avaliação, até que ponto essa conjuntura global está afetando positivamente ou negativamente o Brasil?
Depende de quem está perguntando. Para as contas públicas, está sendo bom. Mas, do ponto de vista da população, está sendo muito ruim.
A pandemia trouxe uma realidade, que é o aumento da desigualdade. Combatê-la será um desafio para o Brasil, onde o desemprego bate recorde e a inflação corrói o poder de compra. Esse quadro ainda pode ser agravado?
Em todos os países, o impacto da pandemia tem sido negativo do ponto de vista da distribuição de renda. Pessoas menos qualificadas dependem mais desse tipo de ocupação. E, portanto, o efeito da pandemia foi desigual nesse sentido. Ninguém pode imaginar que, supondo racionalidade e não “bolsonariedade” ou “trumpidade”, no caso daqui, que as pessoas voltarão a ir para um restaurante do jeito que iam antes, enquanto o risco de contaminação não baixar. Então, esses efeitos negativos sobre a estrutura de emprego e a renda dos mais pobres não foram eliminados ainda. E isso é agravado pelo aumento de preços sobre a cesta básica.
E quais serão os principais desafios para o crescimento do Brasil? Há muitas revisões do PIB deste ano para cima, chegando de 5,5% a 6,5%, mas para 2022, as previsões desaceleram para algo em torno de 2%...
O ponto é que os problemas de crescimento do Brasil são de natureza estrutural e mais longa. O crescimento extraordinário deste ano é, em grande medida, como em qualquer lugar onde há uma recuperação pós-pandemia, uma simples reposição de níveis de PIB ,e não podemos contar isso como uma taxa normal de crescimento econômico. O potencial de crescimento do Brasil hoje, a julgar pelas características estruturais da economia brasileira antes da pandemia, supondo que tudo volte a ser como era, está em 2%, no máximo, em 2,5% no cenário mais otimista. A realidade volta. Portanto, não faz sentido comparar 2021 com 2020, mas sim com 2019, que já era um patamar ruim que vinha há vários anos.
Como o senhor está vendo essa confusão em torno da reforma tributária e que também afeta a produtividade?
Eu estou acompanhando a distância. Não me sinto suficientemente informado para dar uma opinião. Mas o que eu escuto de dois amigos economistas que são excelentes na área, o Bernard Appy e o Fabio Giambiagi, é que eles não estão muito contentes com a proposta e com as discussões. Um dos motivos é o efeito de aumento de carga tributária e a não resolução do problema da complexidade que existe no sistema tributário brasileiro.
Analistas dizem que a economia poderá ser o fator decisivo nas eleições de 2022, até mais do que como o governo vem atuando na pandemia, porque a sensação de bem-estar da população será crucial para definir o voto no ano que vem. A rejeição crescente a Bolsonaro pode mudar?
As últimas pesquisas de opinião estão mostrando maior rejeição ao presidente. Mas a conexão entre a economia e a sensação de bem-estar e rejeição do presidente não é automática, mas é provável. Particularmente, a percepção de que a dureza da pandemia pode ser, de certa parte, atribuída à atitude de Bolsonaro e aos escândalos do governo de não responder à Pfizer e responder rapidamente à suposta vacina, Covaxin, complicam uma reeleição.
E como está a imagem do Brasil no exterior?
Muito ruim, por três motivos. Primeiro, antes de tudo, a irresponsabilidade do governo em relação à Amazônia. Segundo ponto negativo associado com isso é a visão do governo em relação aos direitos humanos e sociais. E, por último, é a postura do governo em relação à pandemia.
O ministro Paulo Guedes e sua equipe insistem em afirmar que a economia se recuperou em uma curva em V, mas quando olhamos os números, essa recuperação é muito desigual e o PIB ainda não voltou ao patamar de 2019. Como o senhor avalia essa retomada?
Não é uma retomada em V. O país que teve uma recuperação mais próxima de V foi a China. E, no caso dos Estados Unidos, se aproxima disso, mas não chega a ser um V, mas pode terminar o ano em um patamar maior do que o de 2019. Certamente não é o caso do Brasil. Continua sendo o cenário da raiz quadrada mesmo e o cenário de K também é aplicado por conta dessa recuperação desigual. A ideia de curva em V, U ou raiz quadrada, são a média e o agregado. Mas, quando reconhecemos a diferenciação entre os componentes da sociedade e da economia, é um K, inclusive, nos Estados Unidos.
O Brasil, mesmo com as previsões de crescimento do PIB neste ano mais elevadas, de 5,5% a 6,5%, ainda cresce menos do que a média global e que os países emergentes, neste ano e nos próximos anos. A nossa sina é continuar crescendo pouco?
A resposta da sua pergunta depende, em grande medida, de qual será a cicatriz definitiva da pandemia no Brasil. Agora, durante a pandemia, o que certamente podemos dizer, diante das projeções do FMI e do Banco Mundial e todos os outros, é que a recuperação está sendo desigual, inclusive, por conta da vacinação. A gente sabe que, definitivamente, América Latina e Caribe estão se recuperando mais lentamente, e, portanto, ao final da pandemia, a região estará em um patamar com um hiato em relação aos países avançados, maior do que antes da pandemia.
Olhando para a China, que está desacelerando, a recuperação global vai continuar dependendo do desempenho da economia chinesa?
A julgar que a China não terá mudado por conta da pandemia, vai ter uma acomodação do ritmo de crescimento. O desempenho do PIB chinês, neste ano e no ano passado, foi extraordinário. A tendência do crescimento chinês é cair para alguma coisa abaixo de 6%. O que está acontecendo neste ano é um ponto fora da curva, definitivamente.
Nesse cenário, como o senhor avalia o desempenho do ministro Paulo Guedes e da equipe econômica? Eles fizeram um bom trabalho?
(Risos) O ministro tem que ser avaliado a partir de dois prismas. Primeiro, essa avaliação não depende só do Ministério da Economia, mas do governo como um todo. A segunda coisa é que, em alguns momentos, o ministro Paulo Guedes quase atrapalhou. O fato é que a gente não tem, ainda, um desempenho do ministro Paulo Guedes. Está aquém do que ele prometeu quando tomou posse.
E essa MP da privatização da Eletrobras é uma prova de um governo fraco que não consegue evitar uma piora na proposta no Congresso?
Pois é. Aí a responsabilidade é do governo e da sua incapacidade de fazer a sua parte para que o Congresso não entrasse em uma estação de criação de jabutis. E será que vai dar para colocar jabutis nos Correios também?
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