Apesar de os dados positivos do Produto Interno Bruto (PIB) do primeiro trimestre do ano revelarem alta de 1,2%, acima das expectativas do mercado no início da segunda onda da pandemia da covid-19, o discurso otimista da retomada em V da atividade econômica do ministro da Economia, Paulo Guedes, continua sendo controverso e não deve surpreender o mundo, como o chefe da equipe econômica gosta de afirmar. Há uma série de problemas da economia, como o aumento da desigualdade e da pobreza, que não serão resolvidos apenas com o crescimento das exportações agrícolas, enquanto o país bate a marca de 500 mil mortos pela covid-19.
Na avaliação de especialistas, não adianta olhar apenas os números positivos e superficiais e esconder os ruins debaixo do tapete, porque o desemprego é crescente e baterá outros recordes ao longo do ano, em um cenário de inflação oficial, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) podendo encerrar 2021 entre 6,5% e 7%, bem acima do teto da meta, de 5,25%. Isso tem forçado o Banco Central a mudar a estratégia e elevar ainda mais a taxa básica de juros (Selic) neste ano, pois o custo de vida não para de subir. Nesse cenário, os preços dos alimentos aumentam em um ritmo mais acelerado do que o IPCA, de dois dígitos no acumulado em 12 meses, corroendo a renda das famílias mais pobres, agravando a desigualdade que não aparece no PIB. E o custo da moradia também sobe e vai além da conta de luz cada vez mais cara devido à crise hídrica. O Índice Geral de Preços-Mercado (IGP-M), usado para corrigir o aluguel, por exemplo, poderá encerrar o ano em 20% pelas previsões da MB Associados.
Os analistas alertam que é preciso olhar mais a fundo os indicadores do PIB, pois eles também mostram desempenho heterogêneo entre os diversos ramos de atividade da economia. Vários segmentos importantes para a geração de empregos ainda continuam bem abaixo do patamar pré-pandemia, de fevereiro de 2020. Com isso, há uma divisão de opiniões sobre o verdadeiro formato dessa retomada que, para eles, não tem forma de um V.
Uns acreditam em um crescimento mais discreto, com uma curva no formato do símbolo da Nike ou uma raiz quadrada. Outros falam que essa curva de recuperação está mais para um K, onde os mais ricos enxergam uma retomada em V, enquanto os mais pobres veem o país descendo a ladeira e a renda, quando há emprego, cada vez menor. Os mais pessimistas não descartam uma retomada em W, quando a atividade tenta crescer, mas recua em seguida, e, em vez de decolar, acaba dando voos de galinha. Não à toa, mesmo para as entidades que revisaram o crescimento do PIB deste ano para 5% a 5,5%, em 2022, as estimativas estão mais modestas, em torno de 2%.
“Não é possível afirmar uma retomada em V quando há aumento da desigualdade e do desemprego e vemos que muitos segmentos da atividade, que são importantes para a geração de emprego, como os serviços voltados para as famílias, ainda estão 40% abaixo do patamar pré-pandemia”, destaca a economista Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre). “O PIB vem crescendo, mas essa recuperação não chega para todos. E isso é um processo complicado, porque a recuperação é desigual, e o grande desafio do governo é fazer o mercado de trabalho se recuperar. Mas isso só deverá ocorrer quando o país conseguir superar, de fato, o problema da pandemia, o que só será resolvido com a vacinação”, alerta.
Alessandra Ribeiro, sócia da Tendências Consultoria, destaca que vários segmentos da economia ainda não conseguiram voltar ao nível pré-crise, inclusive da indústria, cujos indicadores acabaram sendo mais positivos no processo de recuperação, mas também há desigualdade. “O setor automotivo ainda está 12% abaixo do patamar pré-pandemia e o setor de vestuário, 22% abaixo”, enumera. “A atividade econômica acabou surpreendendo positivamente, mostrando resiliência, mas isso foi mais reflexo do cenário externo favorável devido aos estímulos fiscais e monetários globais. No mercado doméstico, o crescimento é desigual e isso é ruim com a inflação em alta, especialmente, porque ela ainda deverá aumentar mais quando houver crescimento da demanda por consumo, que ainda não está ocorrendo”, alerta a economista.
Pelas estimativas do FGV Ibre, a tendência é que a taxa de desemprego, que bateu recorde de 14,7% no primeiro trimestre do ano, deverá continuar subindo ao longo do ano, mas deverá voltar para esse mesmo patamar no quarto trimestre, chegando a 13,8% no fim de 2022. O economista e consultor Carlos Eduardo de Freitas, embora otimista, demonstra preocupação com o desemprego batendo à porta de quase 15 milhões de brasileiros. “É impossível falar em retomada em V em uma economia com mais 14% de desemprego. Não tem como, porque isso só poderá ocorrer quando houver pleno emprego”, frisa o ex-diretor do Banco Central. Para ele, um crescimento mais forte só será possível “se não houver o risco de apagão no cenário”.
Miséria crescente
Um dado que chama a atenção atualmente é o aumento do índice da miséria — indicador calculado pela soma da taxa de inflação com a de desemprego, de acordo com Sergio Vale, economista-chefe da MB Associado. Pelos cálculos dele, esse indicador bateu recorde em maio, somando 23,7 pontos percentuais, o patamar mais elevado da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), iniciada em 2012. “O governo procura focar apenas os grandes números e esconder os ruins, como taxa de desemprego, e, assim, evitar comentar sobre os problemas”, afirma. Vale cita como exemplo os dados positivos do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) — costumeiramente destacados por Guedes em seus discursos — porque registrou a criação de pouco mais de 900 mil vagas formais no ano até abril. “Esse número está forte, mas não reflete o que está acontecendo no mercado de trabalho. O governo vai se apegar politicamente a essa narrativa, que é mais positiva, como o governo do PT sempre fez”, emenda.
Na avaliação de Pedro Fernando Nery, consultor de economia do Congresso Nacional, o discurso otimista do governo é baseado em PIB e, portanto, não olha para fatores que estão aumentando a desigualdade, como o desemprego e a queda da renda per capita da população. “O PIB é, normalmente, uma medida razoável, que permite comparar a evolução de uma sociedade no tempo e como essa sociedade está mudando em relação a outros países. Mas, para esta crise da covid-19, não faz sentido olhar para o PIB, porque a atividade econômica das famílias foi afetada de forma muito desigual”, explica. “O PIB não capta bem a desigualdade, até porque não foi feito para isso. É como se ele fosse uma média da situação de todos, mas uma média ponderada, em que tem maior peso a riqueza de cada um. Então, quanto mais ricos vão bem, e os mais pobres vão mal, o PIB pode até crescer”, diz.
Nery alerta que a euforia com do mercado e do governo com o PIB descola das pessoas pedintes nas ruas e da própria taxa de desemprego, que, em algumas medidas, está ao redor de 20%, se forem incluídas as pessoas que pararam de procurar trabalho. “Não tem como haver euforia com desemprego de 20%. Vale lembrar, ainda, que medidas tradicionais de desemprego não captam os que seriam considerados desempregados, mas não estão buscando emprego. E por conta do vírus, muitos estão nessa situação, já que não querem se contaminar ou já que não há demanda na pandemia para a sua atividade”, afirma.
Para Jason Vieira, economista-chefe da Infinity Asset Management, essa corrida pela vacina travada entre os governadores nos últimos dias poderá ajudar no processo de recuperação da economia e ajudar o governo federal a confirmar uma expansão do PIB mais robusta. “As previsões atuais mostram um crescimento em torno de 5% neste ano, o que é muito positivo por conta de os dados estarem vindo melhores do que o esperado. Com a vacinação avançando, a perspectiva de abertura da economia poderá ser antecipada, o que é muito positivo, pois e poderá ajudar a acelerar mais a retomada”, avalia Vieira. Nesse sentido, ele elogia a iniciativa dos governadores, que passaram a disputar quem consegue vacinar os mais jovens primeiro. “Não existe melhor briga no mundo do que a da vacina neste momento”, completa.