Em franca regressão
Não há nada normal no país se tentam tornar narrativa fictícia em realidade e muitos acreditam. Ou fingem acreditar pela velha razão pecuniária ou ideológica, indiferentes às mortes na pandemia, que se combate com vacinas que esse governo comprou tardiamente, e à retomada econômica que não reduz desemprego nem ativa o progresso.
Nessa “pós-verdade” brasileira, expor a fraude do tal “tratamento precoce” contra o Sars-Cov-2, defendido por uma médica na comissão parlamentar de inquérito do Senado, seria “covardia”, como opinou o presidente Jair Bolsonaro. Para ele e o chamado mercado, vai tudo nos trinques na economia porque a Bolsa de Valores está em ebulição e a queda do dólar vis-à-vis o real logo vai franquear as férias em Miami.
Os fatos colidem com a narrativa disseminada pelo governo. Até o código disciplinar do Exército, que veda a presença de oficiais em atos políticos, foi ignorado com a decisão do comandante da Força, general Paulo Sérgio Nogueira, de livrar a barra do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, também general, para agradar o presidente.
Pazuello participou do passeio de moto que reuniu bolsonaristas no Rio, dois domingos atrás, e discursou no carro de som em que estava Bolsonaro. Adicionou ao rol de polêmicas, o grosso das quais é alvo de apuração da CPI do Senado, a do general da ativa palanqueiro, um ato repudiado pelas Forças Armadas desde que um cabo da Marinha pôs fogo numa assembleia de suboficiais na véspera do golpe de 1964.
O que quer Bolsonaro? A questão incomoda aqui e no exterior. The Economist, referência do liberalismo político e do neoliberalismo financeiro global, tenta decifrá-lo em 10 páginas nesta semana. A sua conclusão: “Os políticos precisam fazer as reformas econômicas atrasadas. Os tribunais devem reprimir a corrupção. As empresas, ONGs e brasileiros comuns devem protestar em favor da Amazônia e da Constituição. Mas será difícil mudar o curso do Brasil enquanto Bolsonaro for presidente. A prioridade mais urgente é afastá-lo”.
É o oposto do que ele almeja. Quer reeleger-se seja o que tiver de fazer, como humilhar a corporação da qual foi forçado a se reformar quando era tenente e gastar — alô Centrão! Neste propósito, não se avexou em ser negacionista no combate à pandemia, entendida por ele como obstáculo a seu projeto, apesar das mortes — “e daí?”, zombou meses atrás —, passou os últimos dois anos atiçando a sua horda de extrema-direita contra o Congresso e o STF e vai promover gastança fiscal que julgar necessária para tentar seduzir o eleitor.
Lava-Jato legou Bolsonaro
E o Brasil? Ora, está acima de todos, conforme o bordão do capitão insubordinado — “mau militar”, como o definiu o general-presidente Ernesto Geisel. Ainda assim, se elegeu como a resposta malcriada dos eleitores indignados com o PT e os políticos em geral em 2018. Foi este o grande legado da Lava Jato: solapar o que sempre foi frágil.
E agora? Com os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, silentes quanto aos riscos institucionais abertos pela temerária decisão do comando do Exército de abonar Pazuello, sobram o STF, o único dos Três Poderes constitucionais a barrar os ímpetos autoritários de Bolsonaro quando se fez necessário, o clima de mal-estar nas Forças Armadas (cientes de que a anarquia já agita as polícias nos estados) e a chamada “voz rouca” das ruas.
Os protestos do último dia 29 contra Bolsonaro foram expressivos como jamais os bolsonaristas conseguiram. E outro está marcado para o próximo dia 19, validado pelo fortíssimo panelaço que recepcionou a fala de Bolsonaro na quarta-feira em rede nacional de tevê.
Recibo de ignorância social
Não é sábio ignorar revoltas populares espontâneas, sobretudo em tempo de redes sociais. O governo do Chile não percebeu e teve de engolir uma constituinte formada por maioria de esquerda. A Colômbia vive um estado de insurreição popular como sequela de uma tentativa de reforma tributária malformulada. Nos EUA, houve Trump, que fracassou, e tem Biden buscando reformar a ortodoxia do mercado.
No fim, quando a maioria desprezada se vê como peão de interesses que não lhe confortam, e a maioria no Brasil é de gente sofrida, maltratada pelos governantes e “invisível” aos tecnocratas (como o ministro Paulo Guedes os qualificou, surpreendido pelo número de trabalhadores informais sem renda na pandemia), explosão popular é questão de tempo. Supor que um auxílio emergencial encorpado fará diferença ao governante é passar recibo de ignorância social.
E assim chegamos ao crescimento de 1,2% do Produto Interno Bruto, PIB, no 1º trimestre, em relação ao 4º trimestre de 2020. Foi mais que o previsto, mas ainda não é indicativo de otimismo, se o naco do consumo das famílias neste resultado recuou na mesma comparação. E como crescer, com desemprego recorde, de 14,7% até março, ou quase 30%, incluindo desalentados e o emprego precário?
O Brasil dos sem noção
A verdade é que o crescimento trimestral foi movido mais pela reposição de estoques que pela exportação de commodities e, sem este resultado, a variação intertrimestres teria sido negativa. E, sem a injeção fiscal de quase 8% do PIB, no ano passado, para compensar a parada da economia pela pandemia, metade sob a forma de transferência direta de renda, a economia continuaria prostrada.
Essa é outra narrativa que incomoda os que só veem maldade na ação do Estado e temem que um Bolsonaro ensandecido com a reeleição una os pontos e conclua que a orientação liberalizante de Guedes, com o apoio do mercado financeiro, seja uma fria. Gasto fiscal é válido, mas não para devaneios populistas eleitorais nem para projetos de investimento que só fazem a fortuna de vigaristas.
É o caso do projeto de privatização da Eletrobras que a Câmara aprovou inserindo corpos estranhos à matéria original em atenção a lobbies de empreiteiros e de investidores minoritários da estatal, representando um ônus descabido aos consumidores em geral. O texto está agora no Senado. A decisão racional é deixá-lo caducar.
Governo fraco, dependente de maioria parlamentar aliciada graças à omissão dos órgãos de controle e à hipocrisia de liberais de araque do mercado, e com propensão a virar a mesa, leva ao que se assiste — o risco de uma crise institucional. É o Brasil dos sem noção.