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Um governo sem noção

Se havia dúvidas sobre o descaso do governo de Jair Bolsonaro com a decisiva questão da compra de vacinas, elas se desfizeram com o depoimento sereno e técnico do ex-presidente e hoje gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, à CPI do Senado. Pelo menos 1,5 milhão de vacinas poderiam ter sido aplicadas já em 2020, tivesse o presidente dado a atenção exigida pelo vírus assassino.


Apoiado em documentos que traçam a linha do tempo das reuniões com o governo desde a primeira oferta de vacina em agosto, Murillo justificou a necessidade da CPI e a relevância de ao menos sete dos 11 senadores que formam a comissão de inquérito. Não se acovardaram frente aos ataques da extrema-direita bolsonarista em redes sociais e à devassa anunciada contra eles e seus parentes.
Com os testemunhos do contra-almirante da reserva e médico Antonio Barra Torres, presidente da Anvisa, e dos ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, mais aquele que este, a CPI já reúne fatos comprobatórios da incompetência, num juízo brando, e de faltas mais graves que deverão compor o relatório a ser votado na CPI e, se aprovado, submetido ao plenário do Senado.
Pode até ser recusado, algo plausível depois que se soube a forma com que o governo aliciou os partidos do tal Centrão para sua base de apoio – R$ 3 bilhões em emendas parlamentares adicionais ao naco reservado legalmente a cada deputado e senador na lei orçamentária. Mas só para poucos caciques e fora das vistas do Tribunal de Contas da União, da imprensa e dos contribuintes. Uma farra.
As falas dos depoentes, na condição de testemunhas, comprovaram as manobras para fazer da cloroquina tratamento padrão contra um vírus que, como todos os vírus, somente vacinas são eficazes, além da sabotagem das medidas de isolamento social e de uso de máscaras.


Até as evasivas e mentiras do ex-secretário de Comunicação Social Fábio Wajngarten para proteger o presidente, e contraditadas em seu próprio depoimento, serviram para revelar as vísceras de um governo delirante, grosseiro e “intelectualmente indigente”, conforme a definição do jurista Miguel Reale Júnior. Tudo mais é consequência.

Governando por procuração

Não há um único evento ou responsável solitário pelo atoleiro em que se enfiou o país. Do desgoverno da pandemia à economia empacada sem criar empregos nem gerar renda alinhada ao ritmo demográfico, sem acompanhar as transformações tecnológicas e modelos de gestão e de negócios que lhe são inerentes, tudo isso vem de longe.


Bolsonaro é a consequência da estagnação que já dura 40 anos, com tendência de regressão desde a grande crise global de 2008, assim como Lula fora em 2002, e poderá voltar a sê-lo em 2022, devido à incapacidade da coalizão reducionista que nos governa de reformar a governança do Estado e de pôr pilha no dinamismo empresarial.


Dois equívocos estão claros, embora pouco compreendidos. Primeiro é o desconforto do governante com a faina administrativa, razão de estar sempre desviando a atenção sobre suas responsabilidades e apontando o dedo para inimigos. Tal estilo foi transformado pelas lideranças experientes dos partidos que vivem de favores e de nacos de fundos públicos na rara oportunidade de governar por procuração, dirigindo o que é mais caro ao governo: a execução orçamentária.


Como partidos despreocupados com a imagem que lhe tem o eleitor e as sequelas de suas ações, o ônus dessa parceria soa leve: deixar aprovar a pauta revisionista do bolsonarismo, como compensação aos projetos dos setores mais atrasados da economia, tipo o desmonte da legislação ambiental, a permissão para a criminosa titularização de terras públicas invadidas na Amazônia, a vandalização de reservas indígenas pelo garimpo, refazer sem discussão a revisão tributária.

Reformas para retroceder

Bolsonaro pode ter dúvidas sobre aonde quer chegar, mas o Centrão que lhe deu sobreviva sabe bem. Já esvaziou o direito de expressão da minoria na Câmara, ao dificultar a prática da obstrução e do tempo de fala. E investe agora para mudar a legislação eleitoral a fim de facilitar a reeleição dos “parças” e a oligarquia política.


O presidente da Câmara, Arthur Lira, abraçou também a “causa” do voto impresso, como quer Bolsonaro para, diz ele, impedir “fraude com as urnas eletrônicas”, que não seriam auditáveis. Isso é falso.


O processo tem 25 anos e nunca se comprovou nada que o desabone. Se aprovado, implicará a volta do voto de cabresto e outros ardis.


Não são reformas, são retrocessos, sobretudo nas áreas ambiental e da governança pública, em claro conflito com o previsto nos acordos do clima e pelo chamado ESG, acrônimo em inglês de Environmental, Social and Governance – regras de boas práticas de gestão privada e governamental. Elas recebem a adesão crescente de grandes empresas e investidores internacionais.


Se o revisionismo for endossado pelo Congresso, o custo a ser pago pelo país será alto. A possibilidade que se apresenta é de o Senado (menos exposto ao “bolsolão” governista) conter os disparates.

Por que as nações fracassam

Os resultados pífios da economia e o desalento social são sequelas do tumulto político, que é antigo e tende ao caos, com o país ainda à mercê da regra da estabilização da dívida, de acordo com o cânone do fundamentalismo do mercado e do Estado como fonte de problemas e não de progresso, em vez da estabilização macroeconômica – conceito mais amplo e menos sujeito à captura por ideologias anacrônicas.


Essa orientação macroeconômica perdura há quatro décadas e não tem como continuar sob pena de inviabilizar o setor público e a nação — um risco nada desprezível dada a ignorância altiva dos governantes e de seus apoiadores, além da sordidez de parte dos representantes do povo. É o que está a desvendar a CPI do Senado com a exegese da pandemia e os flagrantes das razões de as nações fracassarem.