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A Terra em transe

Como líder de um governo que desconhece estratégia e planejamento, ignora o progresso econômico, social e tecnológico como o que a sua gestão deveria perseguir e desdenha as relações externas a ponto de o ex-ministro da área debochar de o Brasil ser tratado como pária do mundo, o discurso de Jair Bolsonaro na Cúpula do Clima convocada pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, foi de alguém atônito com seus devaneios ideológicos e alheio à real acepção dos compromissos ambientais.

O que lhe escapa, assim como aos políticos e mesmo aos empresários que começam a se preocupar com a destruição ambiental e o risco de sanções de outros países e da reação dos investidores estrangeiros, é que a questão climática não implica apenas cuidar da natureza e criminalizar devastadores ambientais, grileiros de terras públicas, os invasores de territórios indígenas e das florestas nacionais.

Fazer cumprir as metas de redução das emissões de gases de efeito estufa implica cortar radicalmente o uso de petróleo, carvão e gás, reinventar a indústria e o agronegócio, mudar hábitos de consumo.

Não se acomoda tamanha transformação sem outra macroeconomia, que começa a se delinear nos EUA do governo de Joe Biden. Ela vem para permitir investimentos públicos e privados como não há nos EUA e na Europa desde a Segunda Guerra e induzir as empresas a “desfinanceirizar” seus negócios. Isso trará mais governo e menos mercado financeiro.

Estamos preparados? Se mal resolvemos o conflito entre governo e sociedade nas relações fiscais, que definham há 40 anos, certamente que não. Do Brasil, os governos envolvidos com a questão climática, EUA, China, Japão, Europa, querem que cuide da Amazônia, entendida como valor universal a proteger com zelo.

Quanto às transformações que a reversão do aquecimento da Terra já implica, é problema de cada um. Ninguém vai nos ajudar quando ficar claro que não haverá mais motor a combustão, que a era do petróleo caminha para o fim, o viés da alimentação saudável e mais orgânica.

Vai se chegar a tanto? Não se sabe. Mas as possibilidades são mais críveis que irreais. Na corrida tecnológica entre China e EUA, por exemplo, a ficção deve virar realidade ainda nesta década.

O mundo em transformação

Este foi o contexto da cúpula dos 40 governantes convidados para a discussão virtual de dois dias, com o clima como pano de fundo. Mas as estratégias de cada país para resolver o que isso exige cabe aos governantes decidir. O quadro dos grandes poluentes dá uma pista.

Estudo da OCDE discrimina os emissores de gases de efeito estufa — dióxido de carbono (CO2), metano, óxido nitroso e gases fluorados. O setor de energia, com petroleiras à frente, responde por 29% das emissões; transportes, 24%; outras indústrias, 19%; residências e assemelhados, 11%; agricultura, 9%; outros, 8%. Vê-se que petróleo e seus derivados e atividades correlatas são os grandes vilões.

Países como Inglaterra, Suécia, China, França já dataram o fim do veículo movido a gasolina e diesel: entre 2030 e 2035. A China tem meta equivalente. Cada decisão dessas implica rupturas em série. E acelera muitas outras, movidas pela digitalização e a inteligência artificial, com suas aplicações na telemedicina, nas fintechs, na indústria “inteligente”, nas interações pessoais.

Esse processo não tem fim e está só começando. A saudita Aramco, maior petroleira do mundo, se associou a três grupos japoneses para desenvolver o hidrogênio como fonte de energia e combustível. As vacinas contra a covid com tecnologia RNA mensageiro se deveram a pesquisas prévias do sistema imunológico. Uma coisa leva a outra, tipo a revolução dos pagamentos digitais graças ao smartphone.

Brasília parou no passado

Tais cenários não passam por Brasília, quanto mais pelo governo e por Bolsonaro. Ao menos, não repetiu na cúpula do clima a alegação de que os ataques às queimadas na Amazônia e no Pantanal se deviam a uma conspiração de insatisfeitos com o sucesso do agronegócio, como fez ao discursar na assembleia virtual das Nações Unidas em setembro passado, influenciado pelo negativismo de Donald Trump.

Ele se dirigiu a Biden (que se ausentou pouco antes de sua fala) e disse que, em atenção ao seu chamado por “compromissos ambiciosos”, determinou que a neutralidade climática do Brasil fosse antecipada de 2060 para 2050. Prometeu também eliminar o desmatamento ilegal até 2030, reduzindo em 50% as emissões até essa data.

Perfeito até então, porque, na sequência, ele voltou a ser ambíguo. “É fundamental podermos contar”, insinuou, “com a contribuição de países, empresas, entidades e pessoas dispostos a atuar de maneira imediata, real e construtiva na solução desses problemas”. Em suma, pediu dinheiro para exercer o que cabe soberanamente apenas ao país — a preservação dos biomas. E falseou ao declarar que “duplicou os recursos destinados a ações de fiscalização”.

País refém de preconceitos

Não, o orçamento do Ministério do Meio Ambiente encolhe desde que Bolsonaro assumiu e nomeou para a pasta um advogado e político sem noção das questões ambientais. O ministro Ricardo Salles esvaziou o Ibama, o ICMBio, substituiu funcionários de carreira por policiais, a maioria da PM de São Paulo, centralizou a cobrança de multas, que não têm sido executadas, proibiu, atendendo instrução de Bolsonaro, a apreensão e destruição de equipamentos de garimpos ilegais etc.

A derrubada de florestas é flagrada pelos satélites que orbitam a Amazônia, alguns de outros países; o avanço predatório sobre terras indígenas está bem documentado, assim como a grilagem de terras da União. O governo quis reconhecê-las com uma medida provisória não votada pelo ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia. O atual, Arthur Lira, se compromete a votar um projeto de lei com igual teor.

Como na pandemia, cuja letalidade se multiplicou pela implicância de Bolsonaro com as vacinas, o meio ambiente foi desamparado pela versão de que seria coisa de esquerdistas e perigosos “globalistas” ou algo assim. A própria economia é refém da ideia errada de que o país está quebrado. Um país movido a ideias econômicas obsoletas e preconceitos políticos nem por milagre entenderá as transformações em curso no mundo. Quanto mais sutilezas da política internacional.