Três doenças cujos sintomas só costumam manifestar-se em fase mais avançada, muitas vezes terminal, acometem o país: obsolescência da governança institucional, esclerose da política econômica dirigida obcecadamente ao equilíbrio entre os gastos e as receitas públicas e o vírus do oportunismo, quando o cinismo corrói a coesão social.
Como e quando irromperam essas doenças?
Primeiro gradualmente: desde 1980 a economia cresce bem abaixo do crescimento econômico médio global, com destaque para o paulatino declínio da indústria. A perda de relevância da economia tanto como fator de progresso social quanto na ordem mundial se acentuou com o viés fiscalista da política econômica a partir da reforma monetária de 1994 e se agravou com o desmonte do Estado pelo atual governo.
Depois abruptamente: a disseminação entre as elites empresariais e políticas do senso de que o país flerta com a insolvência, devido a gastos públicos irrefreáveis, produziu duas grandes reformas, ambas incapazes de repor o desenvolvimento — a da previdência e a que pôs teto na expansão da despesa da lei orçamentária, congelada ao valor nominal de 2017 e corrigida só pela inflação durante 10 anos.
Entre tais reformas, a do teto em 2017 e a da previdência em 2019, o Congresso, em conjunto com o governo, deveria ter aprovado muitas outras mudanças voltadas a: 1) reduzir os custos de burocracia, de conformidade e de obrigações acessórias, genericamente chamados de “custo Brasil”; 2) transmitir a confiança de que não haveria clima para voluntarismo decisório pelas décadas à frente; 3) desobstruir os investimentos privados e públicos; 4) promover as transformações de forma a ter a criação de emprego e renda regular como resultado; 5) induzir concorrência movida pela inovação e abertura comercial; 6) adequar a educação aos requisitos demandados pelos novos tempos.
Tais objetivos ficaram na teoria, em parte contaminados ora pela pregação moralista da Laja Jato, ao disseminar o sentimento de que a corrupção seria causa de todas as frustrações, ora pela ideologia ultraliberal levada ao atual governo pelo ministro da Economia, implicando a paralisia de áreas relevantes de gestão e planejamento do setor público ou o sucateamento — bancos, SUS, órgãos executivos e de controle, tipo Ibama, Funai, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), universidades etc.
De modo geral, vivemos uma espécie de sociopatia coletiva em que o governo, com a conivência de políticos, é sua resultante terminal.
Lava Jato cegou a razão
O noticiário foca, e não erra ao fazê-lo, a inépcia do presidente Jair Bolsonaro, magnificada pelo seu aberrante comportamento diante da pandemia do Sars-Cov-2, vulgo covid-19. Só que ele é o que parte da sociedade quis que fosse, ainda que hoje renegue sua escolha.
A Lava Jato, alavancada pela imprensa, é responsável por isso. Ela impediu que se visse que governança pública obsoleta, implicando a disfuncionalidade das instituições, gerou e ainda gera a corrupção.
Corrupção sistêmica é como metástase de uma organização — funciona sem chefe nem hierarquia, ao contrário da narrativa lavajatista que implicou a criminalização da política. Ela arrastou todo o setor de construção pesada à ruína, em vez de apartar a responsabilidade de seus sócios e executivos do controle das empresas responsáveis por largo pedaço do produto interno (PIB) e do emprego, em especial da mão-de-obra menos qualificada empregada em obras de infraestrutura.
Em 2017, uma minuta de projeto inspirado pela experiência do Banco Mundial em situações semelhantes em outros países foi apresentada a parlamentares e a ministros do governo para resolver os acordos de leniência. O projeto permitia à Justiça incluir mandatoriamente ou não a transferência de controle das empreiteiras, ficando com seus controladores originais os passivos contaminados. Era o jeito de a empresa ser salva, assim como as obras estruturantes a seu cargo. O ambiente punitivo da Lava Jato impediu a iniciativa de prosperar.
A indústria sucateada
No Brasil estamos assim: ideias diferenciadas são descartadas e as inovações nem são consideradas. A mais grave omissão é o que se fez com o planejamento das ações típicas de Estado, como segurança, saúde, educação e equidade federativa, todas em situação de crise, e, no setor privado, com a indústria. Ela representa 11% do PIB, contra 33% duas décadas atrás, mas ainda é responsável por 36% da arrecadação total de impostos e os empregos mais bem remunerados.
Sem indústria, país algum tem relevância e atrai capitais — seja a cidade-estado de Singapura, seja colossos como China, Índia e Estados Unidos.
O governo Joe Biden tem na revitalização da indústria um dos eixos de sua política para manter a liderança dos EUA. Ela se limita hoje a 11% do PIB e a 8% da força de trabalho, segundo estudo recente do McKinsey Global Institute, mas se devem a ela 60% das exportações, 70% da pesquisa e desenvolvimento, 55% das patentes, 20% do estoque de capital, sendo o principal suporte das economias regionais e da vitalidade das pequenas e médias empresas. No Brasil é semelhante.
O tema está na agenda do industrial Josué Gomes da Silva, próximo presidente da Fiesp (a eleição com chapa única será em 5 de julho).
Como chegar vivo a 2023
É visível a olho nu a dissolução das relações econômicas, sociais, institucionais e políticas. O quadro aterrador de mortes, boa parte devido à negligência federal — tema da CPI da Covid no Senado, apesar da má vontade de Bolsonaro e das pressões sinistras de senadores ligados ao governo —, tem relação com o fato de estarmos em abril sem que a lei orçamentária de 2021 tenha sido sancionada. Dê um nome a isso.
O que virá nas próximas semanas e meses não será diferente do que tem acontecido. As atenções se voltam ao que poderá ser em 2023, o que passa pelas próximas eleições. Diminui o risco de Bolsonaro se reeleger. Mas ainda falta candidato não bem para substituí-lo, mas com visão, liderança e programa capaz de recuperar o tempo perdido.
A reconstrução demandará uma nova macroeconomia, outra governança do Estado brasileiro, envolvimento do empresariado local e externo. Poderia ser agora, se houvesse um governo minimamente organizado. Como não há, a transição dependerá de mão firme do Congresso, para o caldo não entornar, grandeza dos líderes que restam... e rezar.