A Receita Federal indicou que pode acabar com a isenção de impostos sobre livros. A justificativa seria de que estes itens são consumidos, em sua maior parte, pela parte mais rica da população. Com isso, a venda de livros passaria a ser tributada em 12%, que é a alíquota sugerida pelo governo para a Contribuição de Bens e Serviços (CBS) — imposto que deve unificar os tributos federais que incidem sobre o consumo na reforma tributária.
Além disso, o governo cita que famílias com renda de até dois salários mínimos não consomem publicações que não sejam didáticas, enquanto a maioria das vendas é registrada na parcela que recebe mais do que 10 salários mínimos.
A situação gerou muitas críticas contra a Receita Federal. Representantes da Frente Parlamentar em Defesa do Livro criticam a medida, assim como sindicatos de auditores da Receita.
Rodrigo Tavares é um escritor de Porto Alegre, autor de “Ainda que a terra se abra'', diz que o tema de taxação de livros parece que é uma pauta muito menos tributária do que se quer vender. “No Brasil, vivemos em uma guerra cultural que vem de alguns anos, onde o conhecimento, a ciência e a literatura são consideradas inimigas de certa classe dominante. Ora, se o discurso não fosse falacioso, antes de taxarmos os livros, taxaríamos outros artigos de elite que não são taxados, tais como: helicópteros, iates e jatinhos (que não pagam IPVA) ou ainda, quem diria, as grandes fortunas. Depois que taxar esses artigos dos ricos, talvez possamos conversar sobre taxar livros”, crítica.
Para Tavares, em um ano atípico como esse, falar no impacto do imposto sobre o livro, enquanto cada vez mais brasileiros estão entrando na zona da miséria e voltando a passar fome, até poderia parecer egoísta. “Mas a verdade é que o mercado do livro movimenta muitas famílias, muitas pequenas empresas, muitos escritores, que estão vivendo como podem nesse longo período de inatividades artísticas. Então, o impacto micro é grave, e o impacto cultural é enorme. É uma geração que está sofrendo uma tentativa de ser silenciada”, explica.
Rodrigo diz que uma possível solução seria não apenas não taxar os livros, como subsidiar os insumos, para o preço do papel voltar a cair. “Penso que o Governo poderia voltar a comprar livros não religiosos para as escolas, espalhando literatura e conhecimento nas bibliotecas do Brasil, espalhando mais cultura por estes ‘rincões’ tão bonitos e ‘judiados’ do nosso país”, declara.
Para o escritor, roteirista de quadrinhos, professor de escrita criativa e apresentador do Podcast de Literatura 30:MIN, Vilto Reis, por um lado parece um ato de ignorância do Ministério da Economia, pois o que é o mercado literário em termos de movimentação financeira se comparado a tantos outros mercados? “Esta taxação é como cobrar imposto da esmola que os mendigos recebem, crendo que isso servirá de algo ao estado. A outra perspectiva possível é o clichê de que o emburrecimento do povo favorece a manipulação daqueles que detêm o poder”.
Vilto diz que nasceu, cresceu e reside em um conjunto habitacional. “Sou filho de um pai operário e uma mãe do lar. Mesmo assim, me formei leitor desde cedo lendo os livros da Coleção Vaga-Lume que encontrava na biblioteca da escola. Na adolescência, comecei a comprar meus próprios livros. Muitos deles em promoções na internet e garimpando em sebos. Se só as famílias com renda superior mensal de 10 salários compram livros não-didáticos, espero que o ministro me ajude a recuperar a renda faltante após todos estes anos. Se possível, com juros”, critica.
Reis acredita que dificultar o acesso à cultura é sempre um desserviço à sociedade. “No caso específico da literatura da ficção, a leitura contribui para que o ser humano se torne mais empático. Afinal, a cada história lida, vivenciamos a experiência emocional de outra pessoa ao encarar determinado desafio. A versatilidade de ideias, emoções e visões diferentes do mundo colabora na construção de indivíduos mais capazes de ter um papel influente e colaborativo dentro da sociedade. Evidentemente, nada disso interessa a este governo”.
O ideal para o escritor seria o governo ter o slogan "educação acima de tudo", buscaria a partir da nossa história não repetir os erros do passado e facilitaria o acesso ao conhecimento científico e cultural. Infelizmente, estamos a anos-luz disso. “Por parte dos leitores, podemos fazer petições e protestos na internet. Fora isso, resta votar melhor nas próximas eleições. Esquecer a dicotomia entre a direita e a esquerda, buscando avaliar propostas e não partidos. Pode levar décadas, mas é possível modificar a realidade do nosso país. Basta querermos”, expõe.
Vilto ressalta que a posição do governo se baseia em falácia e informação manipulada. “Afirmo isso pautado em dados, pois a Pesquisa Retratos da Leitura, realizada entre 2015 e 2019, apontou que a Classe C é leitora e compradora de livros. Entre os 27 milhões de brasileiros deste grupo que se autodeclaram leitores, 22% afirmaram que o preço do livro é um ponto sensível ao adquiri-lo. Mas a literatura é um ato de resistência. Se o futuro nos reservar um cenário como o da ficção de Fahrenheit 451, escrito por Ray Bradbury, no qual queimarem nossos livros e nos proibirem de ler, decoramos as obras e recitamos para aqueles que estiverem dispostos a ouvir”, explica.
Impacto nas Editoras
Hulda Rode, escritora e CEO-Founder da Editora Escreva de Brasília, afirma que essa taxação é inconstitucional, pois o setor de livros tem a garantia de imunidade tributária, no tocante ao IPI e ICMS, por causa do artigo 150 da nossa Constituição. “Todavia o setor já recolhe outros tributos para empresas que enquadramento contábil no Simples Nacional, Lucro Real ou Lucro Presumido. A adição de um novo entendimento, em meu entendimento é que gera uma bitributação, ou seja, um grave erro ao setor de promoção do conhecimento”.
Para Hulda não são apenas os ricos que lêem. “A classe A/B tem maior potencial de compra, mas não significa que somente esse é o maior público comprador de livros. A classe C com muito esforço nas finanças pessoais investe sim na aquisição de livros. Essa afirmação feita pela Receita Federal é no mínimo de gestores ou profissionais que desconhecem o comportamento cultural das comunidades brasileiras, pois ali saem grandes escritores e leitores”, expõe.
Segundo a escritora o impacto da bitributação traz grandes danos à sociedade e para o setor de livros que luta pela sua sobrevivência e com a pandemia aumentou ainda mais esse abismo. “Para a sociedade, o principal reflexo é o aumento do preço de capa do livro, tornando-o um artigo de luxo, e obstando o acesso a quem mais precisa dele: a comunidade”, conta.
Já o dano às editoras é o encarecimento do centro de custo de livro, ou seja, se ele aumentar, haverá reflexos no preço de capa, de acordo com Rode. “Haverá ainda a redução da produção de títulos, considerando que se o sobre preço torna o livro como um artigo de luxo, e indiretamente, reconheço isso como uma censura ao conhecimento, considerando que a produção se tornará cara e inacessível a quem não subsidiar um projeto editorial”, explica Rode.
“As editoras, das quais eu faço parte, por meio das outras crises já adotamos algumas práticas para reduzir esses prejuízos como a impressão racional, ou seja, construir parcerias com redes de distribuição que trabalham sob demanda e trabalhar um estoque mínimo de produtos para não perder lucro. E é importante lembrar que quanto mais se distancia o brasileiro da leitura, mais se perde em avanço social. O livro ainda muda mundos e realidades”, continua Hulda Rode.
Formada em ciências da computação, Caroline Coutinho é escritora e fundadora do Grupo Editorial Rainha. Ela conta que não concorda com a afirmação de que só os ricos lêem. “Eu cresci e vivo até hoje na periferia de São Paulo, e isso não me impediu de comprar livros, ler, gostar de ler, de me tornar escritora e principalmente não me impediu de abrir uma empresa para cuidar de livros de autoras que também vivem na periferia. O fato de começar uma editora no meio dessa bagunça está sendo muito difícil. Eu estou fazendo reuniões com algumas empresas que estão fazendo parcerias para poder revender os livros dos autores nessas empresas. E elas já cobram uma porcentagem que será um absurdo para mim, eu já terei que separar uma parte muito grande do lucro dos meus funcionários, para essas empresas que vão revender os livros e chamar mais atenção”, exemplifica.
Com esse aumento, teríamos que aumentar o livro de um autor nacional, que já tem dificuldade de venda. “Vai complicar não apenas o leitor, mas o autor nacional que está tentando vender o livro dele, como a empresa que está fazendo o marketing maior. Abrir uma empresa no meio dessa catástrofe é muito difícil. Hoje em dia consegue-se observar a falta de interesse das pessoas nos livros, quando olhamos suas redes sociais. Ai pensa, se esta assim por causa da falta de interesse das pessoas em procurar livros, imagina quando dificultar o acesso a eles. O livro é vital para a educação, é necessário para aprender qualquer outra coisa na vida e alfabetização das pessoas”.
Segundo Caroline, a mentalidade do governo e pessoal da Receita Federal deve ser no sentido de como ajudar o pobre a comprar mais livros. “Não aumentar o imposto simplesmente porque o rico vai continuar comprando. Porque se eu estou vendo esse problema, eu tenho que fazer o pobre ter acesso, para ter uma sociedade mais inteligente. Porque se está vendo uma coisa que é difícil, tornar impossível vai prejudicar ainda mais. Eu não conseguiria dormir se eu pensasse que estou prejudicando uma população dessa forma”, admite.
Vanessa Nunes é escritora e tem uma editora chamada EmContos Editorial, para ela muita coisa não é justa no mercado literário. “Uma das primeiras coisas que é injusta são os próprios valores do papel, da gráfica. Hoje em dia, muitas pessoas estão optando pelos livros em e-book e digitais, justamente por causa do valor que os livros físicos têm se tornado, cada vez mais caros e mais difícil de publicar. Tanto para as editoras, quanto para os autores”, pensa.
A escritora afirma que antigamente ainda se encontrava livros um pouco mais baratos em sebo ou trocando com amigos, e hoje em dia existe muito pouco isso. Em contrapartida, quando se coloca na balança, os livros digitais facilitam muito, existem muitos livros que são grátis, então com isso facilita um pouco para quem não tem tanto acesso a estar lendo um pouco mais”. Ela explica que não precisa ir muito longe para ver esse preço alto, que um livro físico hoje custa em média R$30 a R$35. “Isso em uma livraria chega a custar R$50, então você acha que a pessoa vai preferir comprar um livro ou mantimentos para alimentar uma família? Então os livros não são apenas para ricos, mas infelizmente passaram a ser um luxo, que muitas pessoas que tinham o acesso hoje têm cada vez menos acesso”.
Para a escritora, antes de algo ser feito, editoras, autores, leitores, gráficas, revisores, todos deveriam se unir mais em prol da literatura. “Eu penso no livro como um bebê, onde ele passa por uma gestação para que no final ele nasça. Então da mesma forma em que um parto passa por vários profissionais da saúde, um livro físico passa por profissionais da área. Se o mercado editorial se unisse mais, conseguiríamos e conquistamos coisas. Um exemplo da nossa força foi a movimentação que derrubou as liminares do prefeito do Rio de Janeiro, ao proibir a circulação de livros. Ninguém é forte sozinho, mas juntos teríamos uma voz e na minha opinião é o que falta para brigar por aquilo que acreditamos” termina.
*Estagiária sob supervisão de Lorena Pacheco