Com a pandemia de covid-19 e a digitalização acelerada dos meios de pagamentos, o dinheiro em espécie vem perdendo espaço na carteira dos brasileiros. Já as criptomoedas têm tido cada vez mais adeptos. Por isso, o Banco Central do Brasil (BCB) decidiu entrar na onda das moedas digitais e promete divulgar, em breve, os pilares do que será o “real digital”.
A emissão de moedas digitais por bancos centrais, as chamadas CBDC (da sigla em inglês Central Bank Digital Currency), vem sendo estudada em todo o mundo e entrou oficialmente no radar do governo brasileiro no ano passado. Em agosto de 2020, o Banco Central (BC) criou um grupo de trabalho para “discutir os impactos de uma eventual emissão de moeda digital no Brasil”. Logo depois, o ministro da Economia, Paulo Guedes, cravou que “o Brasil terá a moeda digital” e o presidente do BC, Roberto Campos Neto, passou a tratar a CBDC como uma consequência natural do processo de digitalização e modernização do sistema financeiro, que acelerou na pandemia da covid-19.
Campos Neto também já indicou que o Brasil deve contar com as condições necessárias para a emissão da moeda digital no próximo ano. E, nos últimos dias, vem prometendo novidades sobre o assunto. “Estamos avançando bastante no projeto de moeda digital e deveremos ter notícias em breve”, afirmou o ministro na Conferência Ibero-americana de Bancos Centrais, realizada recentemente. “A moeda digital se encaixa em um mundo em que há mais negociações digitais”, acrescentou, logo após exaltar o sucesso do Pix e o crescimento das fintechs no Brasil, em um evento de tecnologia.
Segundo o Banco Central, o Pix, sistema de pagamentos instantâneos brasileiros, já é usado por 75,6 milhões de pessoas e 5 milhões de empresas e movimentou R$ 278,4 bilhões só no mês passado. Para Campos Neto, a adesão foi surpreendente em todas as faixas etárias. Pesquisa da Visa, que está trabalhando com o WhatsApp para colocar o Facebook Pay em operação no Brasil, também indicou que 79% dos brasileiros têm interesse em fazer transferências pelo WhatsApp e que esse índice sobe para 83% no público com mais de 65 anos. O uso do papel-moeda, por sua vez, segue o caminho oposto. Dados do meio circulante mostram que, embora tenha crescido em 2020, o volume de dinheiro em circulação no país está recuando em 2021 — em janeiro, eram 8,539 bilhões de cédulas, no total de R$ 363 bilhões, mas, no início de abril, já eram 7,9 bilhões de cédulas, que somam R$ 334 bilhões.
Projeto
Diante desse processo de digitalização financeira, Roberto Campos Neto prometeu “começar a soltar aos poucos” os pilares do projeto que vai levar à emissão de uma moeda digital no Brasil. “Bancos centrais de todo o mundo estão percebendo que é inevitável lançar moedas digitais, para resguardar a soberania monetária e a capacidade de atuação nesse mercado, porque cada vez mais empresas — fintechs e empresas de tecnologia — estão entrando no mercado financeiro e há um interesse de muitos países de acompanhar e supervisionar as trocas financeiras digitais”, explicou o especialista em finanças e tecnologia e professor de sociologia econômica da Universidade de Brasília (UnB), Edemilson Paraná. Para ele, o BC busca “se posicionar de maneira hierarquicamente superior nesse movimento inevitável de digitalização da moeda”, quando pensa em emitir a própria moeda digital e também quando lançou o Pix.
Especialistas destacam, no entanto, que não é possível confundir a moeda digital emitida por um banco central com as criptomoedas conhecidas atualmente. É que, diferente de criptomoedas, como Bitcoin e Ethereum, as CBDCs são reguladas pelos bancos centrais. Roberto Campos Neto já ressaltou várias vezes, por exemplo, que há muitas discussões sobre a rastreabilidade e a remuneração dessas moedas, bem como sobre a exclusividade da emissão e da custódia dos bancos centrais. Quando oficializou os estudos sobre o assunto, o BC também ressaltou que “uma CBDC distingue-se de criptomoedas sem fidúcia (garantia) nacional, como bitcoins, porque se trata de apenas uma nova forma de representação da moeda já emitida pela autoridade monetária nacional, ou seja, faz parte da política monetária do país de emissão”.
“As moedas digitais lançadas por bancos centrais têm esse organismo governamental por trás. Então, são só mais uma forma de emitir a moeda oficial do país. Em vez de emitir papel-moeda, o BC emite a divisa na forma digital. É um real digital, não é uma moeda nova. E, assim como o real, o real digital também será emitido, controlado e fiscalizado pelo Banco Central”, explicou a especialista em câmbio da Universidade Presbiteriana Mackenzie Zilda Mendes. Ela diz que, por isso, a moeda digital pode até se tornar o meio predominante de trocas do sistema financeiro mundial, mas não vai acabar com a moeda em espécie por enquanto. “Vamos conviver, por um bom tempo, com várias formas de moeda, inclusive a moeda em espécie e a moeda digital, até porque nem todos têm acesso aos meios digitais no Brasil”, lembrou.
Da mesma forma, os entusiastas das criptomoedas dizem que a moeda digital do Banco Central não ameaça o Bitcoin, que já se valorizou mais de 100% neste ano. “O real digital não vem para substituir outras criptomoedas, até porque o propósito do Bitcoin é muito diferente do propósito do real digital. O Bitcoin tem uma produção pré-definida e, hoje, é muito mais usado como uma reserva de valor e como um investimento do que como um meio de pagamento. Já o real digital será regulado pela política monetária do BC, ou seja, terá o volume de emissão variando de acordo com a economia e com o que o BC acredita ser o melhor para o país”, explicou o CEO da corretora BitcoinTrade, Bernardo Teixeira.
Facilitação
Para os especialistas, a moeda digital vem para facilitar as transações financeiras e os pagamentos. O Banco de Compensações Internacionais (BIS), conhecido como o banco central dos bancos centrais, reforçou, em relatório publicado no início deste ano, que a moeda digital emitida por bancos centrais oferece uma nova opção para o público em geral reter dinheiro, logo pode ser usada em pagamentos e transferências realizadas por pessoas físicas ou em liquidações nos mercados financeiros. Ainda de acordo com o BIS, a CBDC vem sendo estudada por bancos centrais de todo o mundo com cinco motivações principais: eficiência de pagamentos, inclusão financeira, estabilidade financeira, implementação de políticas monetárias e segurança. Porém, também é vista como uma forma de “salvaguardar confiança pública no dinheiro, manter a estabilidade de preços e garantir sistemas de pagamento e infraestrutura seguros e resilientes”.
No Brasil, também se espera que a moeda digital contribua com o processo de internacionalização do real. “Se você facilita a circulação e as negociações pelos meios digitais, você aumenta o acesso à moeda brasileira e isso pode facilitar a internacionalização do real”, explicou Zilda. Não à toa, Roberto Campos Neto pediu coordenação dos diversos bancos centrais do mundo nas discussões relacionadas à moeda digital. Na Conferência Iberoamericana de Bancos Centrais, ele alegou que “é importante que as principais características das moedas digitais sejam comuns entre os vários países”.
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Projetos-piloto avançam no mundo
Quando decidiu avançar na digitalização do real, o Banco Central do Brasil (BCB) aderiu a um movimento que está em curso em todo o mundo e classificado como inevitável pelos especialistas. Pesquisa realizada pelo Banco de Compensações Internacionais (BIS) explica que 86% dos bancos centrais já estão avaliando o potencial das moedas digitais, 60% deles têm testes práticos sobre o assunto e 14% já estão implantando projetos-pilotos da CBDC. O mais avançado é a China.
O governo chinês lançou o yuan digital no início deste mês. Logo depois, distribuiu a moeda pelos principais bancos comerciais do país e já convidou 100 mil chineses para usar o yuan digital por meio do WeChat — o aplicativo de mensagens do governo digital. Os planos para o yuan digital, no entanto, não param por aí. Como segunda potência econômica do mundo, a China quer usar seu dinheiro digital nos muitos pagamentos internacionais que realiza.
O projeto chinês já preocupa os Estados Unidos, que, apesar de terem estudos sobre o dólar digital desde o ano passado, ainda não colocaram o projeto na prática. O receio dos americanos é que o yuan digital destrone o dólar do posto de principal reserva mundial, sobretudo, porque o Fundo Monetário Internacional (FMI) já deu indícios de que uma moeda digital que tenha apoio de vários bancos centrais e seja aceita globalmente poderia transformar radicalmente o sistema financeiro e assumir o papel do dólar. Por isso, o governo do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e os congressistas norte-americanos têm discutido o assunto e também devem avançar na digitalização do dólar.
O estudo do BIS, que ouviu 65 bancos centrais neste início de ano, revelou, no entanto, que as moedas digitais estão avançando com mais celeridade nos países emergentes, como a China, o Brasil e a Índia, que também está preparando a própria moeda digital.
Especialistas, no entanto, ainda têm dúvidas sobre a tecnologia que vai dar suporte à emissão do real digital e ao canal de acesso à moeda. “O papel dos bancos nesse processo ainda não está claro. Hoje, para ter acesso aos recursos monetários digitais, como o Pix e os cartões, é preciso ter uma conta bancária. A moeda digital, por sua vez, abre margem para uma desvinculação bancária, porque, a rigor, seria possível ter uma carteira digital diretamente com o BC. No Brasil, no entanto, acho improvável que isso ocorra, dada a força dos bancos brasileiros”, afirmou Edemilson Paraná, professor de sociologia econômica da Universidade de Brasília (UnB). “O que provavelmente vai acontecer é uma competição maior, com serviços bancários mais baratos, como transferências e remessas”, acrescentou Bernardo Teixeira, CEO da BitcoinTrade. (MB)