A retomada da economia em 2020, mais veloz do que todas as projeções iniciais, não foi só motivo de comemoração. Para a indústria, representou um problema de difícil solução que, este ano, ainda desafia o setor: a combinação de desabastecimento e alta no preço dos insumos. Aliados às incertezas sobre a evolução da pandemia e das medidas restritivas, esses dois fatores travam o crescimento industrial. No Brasil, todas as cadeias produtivas foram afetadas, mas o problema é global. A construção civil e a indústria automobilística são as mais prejudicadas, porque têm em comum a disparada do preço de uma das principais matérias-primas. O aço subiu cerca de 60% em um ano.
Assim que a indústria começou a ser reativada de forma mais forte, no início do segundo semestre do ano passado, ficou clara a desestruturação das cadeias, assinala o economista da Unidade de Política Econômica da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Marcelo Azevedo. “Houve uma paralisação bastante forte com as medidas restritivas, mas a recuperação foi mais rápida do que a indústria estava esperando. O que derrubou os estoques, afetando o setor como um todo”, explica.
Agravantes contribuíram para o desabastecimento, ressalta Azevedo. “Alguns setores tiveram mudança nos hábitos dos consumidores. Com compra on-line e delivery houve maior demanda por embalagem. A interrupção de reciclagem na época do período mais duro da pandemia, e que até agora não teve solução, também afetou o setor”, elenca.
Além disso, o economista da CNI destaca a questão do câmbio. “Isso não é um problema só do Brasil, mas o nosso agravamento é a alta do dólar”, ressalta. “Na verdade, a falta de insumos começou lá na origem. Antes da pandemia chegar aqui, já tinha começado com a paralisação da fabricação na China”, lembra.
Em síntese, o que os empresários fizeram para sobreviver no período mais complicado foi queimar estoque. Quando os produtores começaram a perceber a melhora, resolveram procurar seus fornecedores, que também estavam com seus estoques baixos. “A gente começou a ver isso no terceiro trimestre e acreditávamos que pudesse melhorar no fim do ano, depois, no primeiro trimestre, duas previsões frustradas.” Com o agravamento da contaminação e lockdowns, Azevedo não arrisca estimar novo prazo para recuperação. “Por mais que, em tese, as empresas estejam melhor adaptadas, não temos certeza de que forma vamos superar isso.”
Construção civil
A construção civil foi o setor que mais gerou emprego em 2020. Em plena pandemia, foi aquecida por uma conjunção de fatores: os juros mais baixos da história, o aumento do crédito habitacional e a forte demanda, impulsionada pelo maior tempo das famílias em casa, por conta do isolamento, e a necessidade de imóveis maiores para acomodar trabalho e estudo remotos. Porém, também foi o setor que mais se ressentiu com o desabastecimento e a inflação, alerta o presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), José Carlos Martins.
“Quando a economia começou a andar mais rápido, ninguém tinha nem produto nem matéria-prima, aí começou a especulação. Em fevereiro, o Índice Nacional da Construção Civil (INCC, que mede a inflação setorial, que estava em 3% saltou para 11%”, assinala. O efeito foi a desestruturação de toda a cadeia. “As incorporadoras que venderam imóveis no ano passado têm que entregar, mas não podem repassar um aumento desse tamanho e vão ter que arcar com a alta dos custos”, pontua. “Numa obra para o setor público, o empresário, que já levou ao limite a rentabilidade para fazer o projeto, vai para a judicialização”, continua.
Quando os empreendimentos têm a ver com o governo federal, que empenhou R$ 175 bilhões para obras, significa entregar menos do que prometeu. “Como o INCC subiu 11%, R$ 20 bilhões vão para o lixo, ou seja, vai fazer menos obra do que previa para não furar o teto de gastos”, completa. Isso porque a lei fiscal só permite aumentar as despesas conforme a inflação oficial, que é o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), cujo índice foi de 4,62% em 2020. Martins diz, ainda, que o desarranjo do setor tem reflexo nos investimentos. “A incorporadora, na hora de lançar um empreendimento, não sabe precificar. Se botar preço alto, corre o risco de sair do mercado. Se não colocar, vai ter prejuízo”, justifica.
O presidente da CBIC comparou a alta dos preços atual ao período de hiperinflação, antes do Plano Real. “Todo mundo sabia que o preço subia de um dia para outro e corria para o mercado. Agora, as siderúrgicas estão fazendo terrorismo, cada mês colocando uma tabela no mercado, com 8%, 10%, 15% de aumento. Como ninguém mais sabe qual é o preço real, as construtoras estão pagando o que podem para ficarem abastecidas”, conta.
Impostos
“O setor defende uma atuação no mercado. Não queremos tabelamento de preços. O BC não tabela o câmbio, mas atua sempre que há uma distorção muito grande. O governo não tem cimento ou aço para colocar no mercado, mas tem caneta para trabalhar com imposto de importação”, explica. “Poderia dar um estímulo, zerando a alíquota dos produtos, para haver uma oferta complementar por determinado período, estabilizar o mercado e os insumos voltarem a ter preço real.”
A ideia já está no papel e foi endereçada para vários ministérios — Desenvolvimento Regional, Infraestrutura, Secretaria de Governo, Casa Civil e Economia. “O nosso problema é conjuntural, temos que resolver”, acrescenta Martins. Hoje, a alíquota de importação de aço é 12%. A matéria-prima, de acordo com a economista da CBIC, Ieda Vasconcelos, subiu 58%, enquanto a mão de obra teve alta de 3% e o custo global com material, 21%.
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Mais gargalos no setor automotivo
O alto custo do aço, que emperra os investimentos da construção civil, também compromete a produção automobilística, mas não é o único gargalo setorial. Segundo Luiz Carlos Moraes, presidente da Associação Nacional de Fabricantes de Veículos (Anfavea), as montadoras têm uma cadeia de fornecedores muito longa e global, e a pandemia desorganizou toda a logística de abastecimento. O custo dos fretes, tanto aéreos (105%) quanto marítimos (339%), disparou.
“Trazemos material da China, Europa e Estados Unidos. Há dificuldade em organizar a logística, com os atrasos de navios e a indústria farmacêutica puxando o setor aéreo. Por conta dos lockdowns, que ainda acontecem, voos são cancelados. Há um desbalanceamento da cadeia logística global”, ressalta Moraes. Tal desarranjo afeta a distribuição de vários itens. “Cada dia é uma coisa, pneu, aço, plástico, resinas. A falta de semicondutores é um problema global, com impacto nas matrizes das montadoras lá fora. Hoje, os carros são conectados e as novas tecnologias exigem muito mais esse tipo de produto.”
Repasse
A pressão sobre os custos é agravada pelo câmbio. “Muitos dos nossos produtos são precificados em dólar. Por isso, alguma coisa está sendo repassada para o consumidor. Mas não é para tentar recuperar nada. Estamos tentando administrar essa combinação explosiva de alta de insumos e desabastecimento”, diz.
O aço plano, essencial na fabricação de veículos, teve alta de 61%, enquanto as resinas e elastômeros subiram 68%. A crise conjuntural, consequência da primeira, está provocando gargalos e paradas cada vez maiores nas fábricas. “A tudo isso se soma a fragilidade estrutural do ambiente de negócios no Brasil, que reduz nossa competitividade em nível internacional, e que não vem sendo devidamente atacada pelas várias esferas do poder público. O horizonte é nebuloso para o planejamento estratégico das empresas, e isso vale para todos os setores da economia”, alerta Luiz Carlos Moraes. (SK)