Conjuntura

Estados e municípios têm sobra de R$ 82,8 bilhões em caixa

Com a suspensão do pagamento das parcelas da dívida pública à União, estados e municípios estão com sobra no cofre. Enquanto especialistas aconselham mirar no auxílio emergencial, governos reforçam a necessidade de avançar com as pautas fiscais

Diferentemente da União, que começa este ano com um deficit primário histórico, estados e municípios brasileiros entram em 2021 com as contas no azul. Dados do governo explicam que, enquanto a União amargou um rombo fiscal de R$ 745,3 bilhões em 2020 por conta da pandemia da covid-19, os governos regionais obtiveram um superavit primário de R$ 38,7 bilhões e, por isso, acabaram o ano com R$ 82,8 bilhões em caixa. O resultado foi o melhor dos últimos 20 anos e, segundo especialistas, poderia ser usado para reforçar o auxílio emergencial neste ano. Estados e municípios dizem, no entanto, que o fôlego financeiro é circunstancial. Por isso, reforçam a necessidade de avançar com pautas fiscais como a PEC Emergencial e as reformas neste ano.

O superavit de R$ 38,7 bilhões registrado pelos estados e municípios em 2020 é o melhor da série histórica do Banco Central (BC), iniciada em 1991. Até então, o melhor resultado havia sido o de 2011, quando as receitas superaram as despesas dos entes regionais em R$ 32,9 bilhões. O resultado é mais que o dobro do obtido em 2019, quando os estados e municípios tiveram superavit de R$ 15,2 bilhões. Assim, acumularam um volume de caixa inédito.

Segundo levantamento do Tesouro Nacional, o caixa dos governos regionais praticamente dobrou, saltando de R$ 42,6 bilhões em 2019 para R$ 82,8 bilhões em 2020. É o melhor resultado desde 2001, quando começaram as medições do Tesouro Nacional. O saldo, porém, não é fruto de uma melhora na situação fiscal dos governos regionais, que, assim como a União, vêm tentando lidar com o aumento dos gastos de pessoal e com a redução dos investimentos há anos.

- - -

Especialistas explicam que os estados e municípios conseguiram uma folga de caixa em meio à pandemia de covid-19 por conta dos auxílios federativos aprovados pela União e pelo Congresso Nacional no ano passado, por meio do programa de enfrentamento ao novo coronavírus. A Lei Complementar 173, por exemplo, determinou o repasse de R$ 60,2 bilhões da União para os estados, os municípios e o Distrito Federal, para compensar a perda de arrecadação e garantir ações de saúde e assistência social.

Além disso, a pedido dos governos regionais, o governo liberou R$ 16 bilhões para compensar as perdas ocasionadas pela crise da covid-19 no Fundo de Participação dos Estados (FPE) e no Fundo de Participação dos Municípios (FPM); transferiu outros R$ 10 bilhões para o financiamento de medidas locais de saúde; e suspendeu o pagamento de dívidas estaduais de R$ 35,35 bilhões.

Os estados e municípios ainda foram beneficiados, indiretamente, pelo auxílio emergencial aos mais vulneráveis. Afinal, ao permitir que as famílias mais pobres continuassem consumindo, o benefício também favoreceu a arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) nos estados. O Ministério da Economia calcula, inclusive, que a arrecadação dos estados subiu 2,14% em 2020. Por isso, sustenta que o auxílio federativo aprovado no ano passado foi mais que suficiente para compensar as perdas financeiras decorrentes da covid-19 nos governos regionais.

“Os auxílios federais vieram acima da expectativa inicial de perda de receitas”, reconhece o consultor econômico da Frente Nacional de Prefeitos (FNP), Kleber Castro. Ele lembra que a ajuda da União foi negociada em abril do ano passado, quando a pandemia ainda estava no início e, por isso, eram grandes as incertezas sobre o impacto que a covid-19 teria na economia brasileira. Prova disso é que, à época, o mercado projetava uma queda de 6,5% a 9% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em 2020, que, na verdade, foi de 4,05%, segundo o Índice de Atividade do Banco Central (IBC-Br). “A proposta dos estados e dos municípios era que houvesse um seguro-receita, em que a União compensaria a perda de receita na proporção registrada por eles. O seguro garantiria uma reposição exata, apenas nos municípios que realmente perderam receita. Porém, o ministro Paulo Guedes não queria passar um cheque em branco, com medo de que os estados e municípios não se empenhassem em garantir a arrecadação. Por isso, assinou um cheque gordo, já que, naquela época, as expectativas eram muito ruins”, recorda Castro.

Segundo ele, o caixa acumulado em função dessa negociação não garante fartura nos estados e municípios neste ano. “O auxílio ajudou a máquina administrativa a passar a crise do ano passado sem maiores problemas. Sustentou o aumento de gastos exigido pela pandemia, permitiu a contratação de terceirizados na saúde e o pagamento em dia do funcionalismo. Houve um aumento de 40% dos investimentos de janeiro a outubro do ano passado. Mas não temos como garantir que 2021 será bom assim do ponto de vista das finanças, pois o cenário ainda é incerto para este ano. Então, pode ser que esse caixa seja suficiente para manter essas obrigações em alguns locais, mas em outros não”, alerta Castro.

Segunda onda

Presidente do Comitê Nacional de Secretários da Fazenda, Finanças, Receitas ou Tributação dos Estados e Distrito Federal (Comsefaz), Rafel Fonteles explica que a folga de caixa não é sustentável, nem homogênea. “Os estados terminaram o ano com uma situação fiscal um pouco melhor em função dos auxílios. Porém, alguns estados tiveram uma compensação superior à perda de arrecadação, outros, não. E há uma preocupação com os meses seguintes. O cenário futuro é diferente, pois esses auxílios acabaram e ninguém esperava uma segunda onda tão forte”, esclarece Fonteles.

Fonteles lembra que o recrudescimento da pandemia exige uma ampliação das despesas dos estados e dos municípios com saúde, ao mesmo tempo em que reduz as receitas, já que diminui o funcionamento de muitas atividades econômicas. Por isso, diz que a sobra de caixa obtida em 2020 deve ser usada para fazer face às despesas necessárias ao enfrentamento da covid-19 e às despesas correntes dos governos regionais, mas também para garantir o pagamento das dívidas com a União, que foram suspensas em 2020, mas voltaram a ser cobradas no início deste ano.

Por conta disso, 18 secretários estaduais de Fazenda engrossaram o apelo pela renovação do auxílio emergencial aos mais vulneráveis na semana passada, em carta enviada ao Congresso Nacional. A Frente Nacional de Prefeitos pretende reforçar o pedido aos novos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que estão negociando a volta do auxílio aos mais vulneráveis com o governo federal. A ideia é que o auxílio emergencial ajude os mais pobres e, indiretamente, também contribua com a arrecadação dos governos regionais, já que não se esperam novos auxílios diretos da União para os estados e municípios neste ano, devido à situação fiscal delicada do governo federal.

“Neste início de ano, ainda estamos sentindo a repercussão dos auxílios. Mas a situação pode ficar complicada nos próximos meses, pois a pandemia continua, a vacinação está atrasada e a crise sanitária impede o comportamento regular dos agentes econômicos”, explica Fonteles. “Os cenários econômicos em 2021 e em 2022 dependem das discussões sobre a continuidade do auxílio emergencial e da vacinação — que ainda caminha em ritmo preocupante em alguns locais. Temos um cenário de incerteza em relação ao desempenho da economia que afeta a arrecadação; tanto que agumas cidades do Norte, mais atingidas pela pandemia, já estão em dificuldade”, completa Kleber Castro.

“Calibrada para cima”

Especialistas concordam que os próximos meses ainda são nebulosos para as contas públicas. Porém, ponderam que parte da sobra de caixa obtida pelos estados no ano passado poderia ser usada para auxiliar a população mais vulnerável no início do ano. Sócio e economista-chefe da RPS Capital, Gabriel Barros explica que o auxílio emergencial exigiu um alto endividamento da União. Ele ressalta que a ajuda federativa também contribuiu nesse sentido, já que foi “calibrada para cima”. E, por isso, acredita que os governos regionais poderiam contribuir com os mais vulneráveis agora. Afinal, ressalta, o governo federal e o Congresso Nacional admitem a volta do auxílio emergencial, mas em um escopo menor que o do ano passado, por conta do impacto fiscal do programa.

“A relação federativa não deve ser unilateral, egoísta e desequilibrada, pelo contrário. O bom senso e o mínimo de solidariedade federativa fariam bem às finanças públicas, às famílias em situação de vulnerabilidade social e ao Congresso Nacional, que teria algum tempo adicional para aprimorar a rede de proteção social com responsabilidade fiscal”, defende Barros. Ele lembra que parte desse recurso voltaria indiretamente para os estados via arrecadação.