Vital para a manutenção da economia em tempos de pandemia, o setor de telecomunicações está prestes a dar um salto gigantesco em termos de atualização tecnológica. Porém, às vésperas do leilão de 5G, cujo edital será deliberado em 24 de fevereiro pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), as operadoras ainda enfrentam gargalos regulatórios e tributários, capazes de atrasar a expansão da oferta de internet no país e encarecer o serviço para os brasileiros.
O mais recente entrave, alerta Marcos Ferrari, presidente da Conexis Brasil Digital — sindicato das empresas de telefonia —, é uma ação de inconstitucionalidade apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela Procuradoria Geral da República (PRG) para voltar a cobrar o direito de passagem, que permite o uso das faixas de domínio das rodovias para instalar infraestrutura, como cabos de fibra óptica ou de energia. Mas esse não é o único. A falta de implementação da Lei das Antenas, que facilita a instalação de equipamentos essenciais à conectividade, e a alta carga tributária do setor, de 47% no país, ante 10% da média internacional, também são desafios que precisam ser superados para alavancar o crescimento das telecomunicações no Brasil.
“O setor é a base da economia digital. Durante a pandemia, o governo abriu os olhos para isso. Mas ainda temos a tributação mais alta do mundo, regulações anacrônicas e uma série de fundos setoriais que oneram as empresas e não servem para nada”, diz Ferrari. “O gap de acesso à internet não é responsabilidade das empresas, é esse conjunto de fatores, de infraestrutura, de peso tributário”, sustenta.
Ferrari alerta, ainda, que se o edital do leilão de 5G obrigar a migração, para a banca KU, do sinal das tevês via satélite, que provoca interferência na faixa, a implementação da nova tecnologia pode demorar até dois anos no Brasil. “A expectativa é que o edital saia este ano. Porém, há coisas a serem ajustadas”, afirma. Confira a seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Correio:
O que é direito de passagem e qual o risco da ação da PGR para o setor?
O direito de passagem é a permissão de usar as faixas de domínio das rodovias para passar dutos, cabos de fibra óptica, para levar serviços às cidades. A gratuidade do direito já estava consolidada no Judiciário, porque é um bem público. Inclusive, o Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte), que cobra o uso, parou de cobrar e fez uma portaria dizendo que, realmente, é gratuito. Aí, veio essa ação da PGR, questionando a gratuidade. O argumento é que, em um momento de pandemia, isso poderia gerar um grande prejuízo para os estados e os municípios em termos de arrecadação. O que não se sustenta. Essa gratuidade é o que permite às empresas levar internet para as cidades mais distantes.
Qual é o entrave relativo à Lei das Antenas?
Em alguns municípios, (a lei) é tão antiga que trata a instalação de antenas como obras. Precisa de licenciamento ambiental, habite-se, uma série de autorizações. Sendo que, no 5G, por exemplo, o equipamento é pequeno. Mas precisa de mais antenas. Existe uma série de buracos regulatórios que ainda precisam ser resolvidos para atender toda a população. A lei foi aprovada em 2020 no Distrito Federal, depois de mais de 10 anos em discussão. Mas, em alguns municípios, como São Paulo, é um problema instalar antenas. A maior cidade do país tem a lei mais atrasada. Há dois anos que não conseguimos instalar antenas. São quase dois mil pedidos parados na prefeitura. O 5G requer mais antenas, mais próximas uma da outra. De cinco a 10 antenas a mais do que o 4G. Vai ser difícil levar o acesso aos locais mais distantes sem instalar esses equipamentos. Esse gap de acesso à internet é um conjunto de fatores de infraestrutura, de peso tributário. Para os locais onde não há viabilidade econômica, existe o Fust (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações), onde há R$ 34 bilhões em valores correntes parados.
O 5G vai oferecer mais tecnologia, mas isso significa mais acesso?
Tem muita fantasia do 5G. Ele não é uma tecnologia preponderantemente voltada para o consumidor. É mais B2B (se refere a duas empresas que fazem negócios) e B2B2C (conceito de vendas pela internet que inclui toda a cadeia comercial, desde a indústria até o consumidor final). O 5G vai chegar às pessoas não necessariamente pelas pessoas. Outros setores vão contratar as operadoras para oferecer o 5G. Então, esse é um modelo de negócios novos. Não é igual ao 4G ou 3G, que, quando foi feito o leilão, se fazia a oferta porque se sabia o que fazer com aquela faixa: oferecer serviço para o consumidor final. O 5G não é isso, exatamente. A melhora percebida pelos consumidores nos países onde já existe 5G não é tão grande assim. A gente vai ter uma experiência mais veloz, com certeza, mas o foco é na relação de negócios, B2B. Novas aplicações, como inteligência artificial, telemedicina, agricultura, controle de rebanho, internet das coisas, gestão pública de mobiliário urbano, segurança.
O retorno para o cidadão comum, então, é em serviços. Mas vai ser mais caro também?
O consumidor vai ter mais velocidade e mais serviços. Sobre preço, não será necessariamente mais caro. Isso depende das condições que serão apresentadas no edital. Depende da carga tributária. O aparelho em si, o smartphone começa mais caro e depois o preço vai caindo, como ocorre com todas as tecnologias. Os aparelhos que existem hoje não vão suportar o 5G. Tem que trocar tudo.
Hoje, o usuário tem 4G, mas, muitas vezes, o sinal cai para 3G e até para 2G. Isso continuará a ocorrer com o 5G?
Depende do dispositivo e do lugar onde a pessoa está. Porque o aparelho faz a busca da rede disponível naquela região. Mas ela cai. Se não tiver o 5G, vai funcionar no sinal disponível.
As estradas não têm sinal. Vão passar a ter com o 5G?
Isso vai depender de como será o edital, quais metas exigidas. Torcemos para que, no edital, fique estabelecido que o leilão não será arrecadatório. Temos esperança e vamos batalhar para que não seja. Porque, quanto mais arrecadatório, menos as empresas poderão investir. Agora, pode estabelecer metas, como disponibilizar internet nas estradas, prioridades de cobertura. É linear, vai ter o VPL (Valor Presente Líquido). Disso você tira as obrigações do edital e o preço mínimo, daí tem ágio. Quanto maior a outorga, menor vai ser o investimento.
As operadoras estão preparadas para o 5G? Há dinheiro para investir? Qual a expectativa?
A expectativa é que o edital saia este ano. Porém, com algumas coisas a serem ajustadas. Há leis desatualizadas, como a de antenas. Como será a abrangência das obrigações. Essa solução sobre as TVs de antenas parabólicas (há uma interferência de sinal). Se for para migrar para a banda KU, isso pode atrasar até dois anos os investimentos em 5G. Temos uma solução que mitiga a interferência. É mais barata, com uma troca de filtro. Com a migração, há uma série de questões operacionais e burocráticas. Vamos dar o lance no leilão e, caso a migração seja para a banda KU, se essa for a solução da Anatel, temos que esperar dois anos para limpar a faixa e poder fazer investimento e ocupar com 5G. Isso pode atrasar a chegada da tecnologia no país.
Quanto as empresas têm para investir no 5G?
Nosso investimento é linear. Em torno de R$ 32 bilhões por ano, em média. Quando a gente pega a curva de adoção de tecnologia, percebe uma migração de investimento. Por exemplo, surge o 3G, aquele investimento em 2G cai e vai para o 3G. Quando surge o 4G, cai o aporte no 3G e migra para o 4G. Essas ondas de adoção de tecnologia fazem com que o investimento seja sempre alto, mas linear. Acima de R$ 30 bilhões é o setor que mais investe no país.
O novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, manteve restrição à China no 5G. A China entende isso como interferência de Estado. Passa a ser assunto estratégico; e o Brasil tomou lado. Como o setor avalia isso?
O que sempre defendemos é manter os dois princípios funcionando, responsáveis pelo nosso mercado de telecomunicações ser o quinto do mundo: o princípio da concorrência e o da regulação. Os dois, desde a privatização, em 1997, e da Lei Geral de Telecomunicações (LGT), funcionam muito bem. A LGT fala que o objetivo da agência é gerar competição. E isso, de fato, aconteceu. O mercado brasileiro de telecomunicações é o mais competitivo do mundo. Quando se pega o índice de competição, somos disparadamente o mais competitivo. O fato de ter quatro grandes empresas não significa que o setor não é competitivo, porque a competição é muito acirrada, mesmo em um ambiente no qual a carga tributária é muito agressiva. A média é de 47%.
A participação da chinesa Huawei é importante para o Brasil?
Mantendo os dois princípios, sem interferência, defendemos a manutenção da concorrência. Ou seja, temos um ecossistema de fornecedores no país com grandes e bons fornecedores. Temos a Huawei, Ericsson, Nokia, Cisco, ZTE, Qualcomm. Esse ecossistema se formou com a competição, de maneira livre, oferecendo o menor preço.
Como a Huawei já está presente no país, se houver restrição o setor terá que refazer tudo? Qual a participação da empresa chinesa?
Depende de qual região, de qual empresa. Há lugares em que a infraestrutura ou equipamentos são só de uma empresa, em outros, apenas de outra. Mas, a média da Huawei é alta. Tem uma participação significativa. E sem ela seria muito ruim.
Isso impactaria no custo dos outros concorrentes, que teriam de construir a infraestrutura do zero?
A tecnologia funciona mais ou menos assim: se você compra de uma empresa, de um fornecedor, cria uma espécie de lock in (dependência), porque uma não conversa com outra. Mas vai depender de cada local. Os pequenos provedores, por exemplo, têm uma grande parcela de equipamentos chineses. Porque o preço é competitivo. No caso das grandes, depende do plano de negócios de cada empresa. Nós investimos muito em segurança da informação. Então, depende da região. Mas existe um legado de tudo o que já foi investido. Certamente, será usado para o 5G. E tem o fluxo, que são os novos investimentos. Só que os novos estão atrelados ao que já foi feito no passado. O 3G funciona em cima do 4G. O 5G vai em cima do 4G. Vamos atualizando. Passamos uma década com duas tecnologias. Na década passada, foi 3G e, na metade, entrou o 4G. Agora, vamos entrar no 5G. Há cobertura em todo país, mas 97% da população moram nas cidades que já têm 4G.
Estudo da Nokia aponta que a cadeia do 5G vai injetar US$ 1,2 trilhão de investimentos em 15 anos.
Uma coisa é o que as operadoras fazem, que são investimentos em infraestrutura; outra é o que isso alavanca. Novas tecnologias no campo vão movimentar equipamentos conectados, por exemplo. Também vai movimentar a construção civil, com cidades inteligentes. O setor de telecomunicações é nuclear. É a base da nova economia porque gera mais investimentos em todas as outras áreas. Concentra o poder de alavancar o poder multiplicador de investimento.
Quais são as perspectivas para o pós-pandemia?
O crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) vai ser negativo, mas menor do que se esperava. Então, isso vai gerar um carregamento para 2021. Mas há muita incerteza ainda. Não se sabe como a economia vai se comportar, sem o auxílio emergencial (ou com valor menor, como avalia o governo), num cenário em que há alto desemprego, que tende a aumentar, com mais pessoas procurando emprego. A taxa de desemprego vai disparar. Essa estrutura do mercado de trabalho não é favorável para a recuperação.
Quanto o setor cresce por ano?
Depende de qual indicador. Se pegar a receita, vem caindo a cada ano. Investimento sempre em alta, porque requer sempre atualização tecnológica. A receita está em queda porque surgiram outros tipos de serviços, como OTTs (over the top, acima do topo, em inglês). São serviços como Netflix e WhatsApp, que surgem em cima da nossa rede, mas tiram receita do nosso setor. Na década passada, 80% eram voz e 20% dados. Hoje, é o inverso, 20% voz e 80% dados. É uma virada. O setor é de consumo de massa e aplicado em ambientes corporativos, a expectativa é manter o nível de demanda relativamente constante. No ano passado, houve aumento de tráfego de 30% durante a pandemia. Como muitos dos hábitos vão permanecer, é possível melhorar o desempenho do setor em 2021 em relação a 2020.
Qual o maior desafio do setor?
A carga tributária. Da reforma tributária, o que nos atende é a PEC 45. Porque o projeto do governo, a CBS (Contribuições de Bens e Serviços), piora a situação. Aumenta a carga em 5 pontos percentuais, então vai de 47% para 52%. CBS não é uma boa proposta para a gente. A PEC 45 é porque junta os tributos sobre consumo e, principalmente, porque coloca o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) por dentro. Nosso principal calo é o ICMS, porque é fácil de arrecadar. A alíquota vai de 25%, em São Paulo, até 35%, como em Roraima e Rondônia.