ENTREVISTA

"No futuro, o cliente vai criar o próprio banco," diz diretor do Banco Central

Banco Central inicia, amanhã, a implementação do open banking no Brasil. Segundo Damaso, até o fim do ano, o consumidor vai ter como levar o histórico bancário para a instituição financeira que quiser, para ter acesso a serviços mais baratos e personalizados

Marina Barbosa
postado em 31/01/2021 07:00
 (crédito: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
(crédito: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

O Pix não é a única novidade que promete revolucionar a forma com que o brasileiro lida com o dinheiro nos próximos anos. É que, amanhã, o Banco Central (BC) inicia a implementação do open banking no Brasil. É um processo que se baseia no compartilhamento de informações sobre produtos financeiros e clientes bancários, e que tem sido comparado ao surgimento da internet no mercado financeiro. Diretor de Regulação do Banco Central, Otávio Damaso explicou que, com isso, o mercado poderá desenvolver novos produtos e o consumidor poderá levar seu histórico bancário para a instituição financeira que quiser, de forma a ter acesso a serviços mais baratos e personalizados.

A ideia é aumentar a eficiência e a concorrência do sistema financeiro, em prol do consumidor. Porém, o ecossistema será implementado por etapas, até o fim do ano. Por isso, neste primeiro momento, o jogo está na mão das instituições financeiras. E o Banco Central promete preparar o consumidor para o compartilhamento de dados pessoais, que começa em julho, com várias normas de segurança, ao longo dos próximos meses. Otávio Damaso antecipou ao Correio as possibilidades que o open banking traz para o sistema financeiro nacional. Confira:

 

O que é o open banking?
O open banking é a padronização do processo de compartilhamento de dados e serviços financeiros, via APIs, pelas instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil. A essência do open banking é o reconhecimento de que as informações, sejam informações de cadastro ou informações financeiras, são suas e não do banco. Logo, se você quiser compartilhar essas informações, você pode compartilhar. O open banking vem permitir esse compartilhamento, de uma forma muito organizada, eletrônica e totalmente segura. Ou seja, vem quebrar a assimetria de informação no sistema financeiro e permitir que você leve seus dados para um terceiro, para um concorrente que consiga te oferecer algo melhor. É uma ferramenta que vai transformar o sistema financeiro ao longo dos próximos meses e anos.

Na prática, como isso vai funcionar?
Por exemplo, hoje você está há 10 anos no banco A e tem um limite de cheque especial de R$ 1 mil, com juros de 1%. O banco B não conhece você, então não consegue ofertar um cheque especial e uma taxa de juros boa. Mas, se você mostrar para o banco B que tem um bom histórico de pagamento, o banco B vai poder oferecer um limite de R$ 1 mil e uma taxa de juros de 0,5%. Para isso, você vai autorizar que o banco em que você tem conta transfira as informações sobre quem é você para o banco B, para que o banco B veja que você é uma boa cliente. Com esse comando, o banco B vai poder monitorar sua conta corrente no banco A e, toda vez que você entrar no cheque especial, o banco B poderá dar o dinheiro por 0,5%. Este é um exemplo claro de como o sistema financeiro vai funcionar no futuro. E o open banking é a padronização dessas informações que vão transitar no ecossistema do open banking, entre as instituições financeiras, que são instituições autorizadas, reguladas e supervisionadas pelo Banco Central, de forma padronizada e digitalizada via APIs.

Qual o objetivo do BC com o open banking?
O que o Banco Central busca com esse processo é um sistema cada vez mais eficiente, tendo como foco principal o consumidor, seja ele uma pessoa física ou uma pessoa jurídica. O principal objetivo é a transformação para o cliente bancário. Com o open banking, o cliente de produtos e serviços financeiros vai passar a ser o piloto da própria jornada financeira. Hoje em dia, você tem uma conta em uma instituição financeira e quer comprar serviços financeiros como investimentos, previdência, seguros, aplicações, mas, às vezes, fica preso àquela instituição, porque o custo de escolher um serviço que está em outra instituição é caro. Mas, com o open banking, você passa a ser o comandante do processo e, no futuro, vai criar seu banco. Vai ter uma conta corrente no banco A, fazer um investimento no banco B e contratar o cheque especial, que hoje é um produto muito atrelado à conta corrente, no banco C, que oferece um limite maior e uma taxa de juros melhor. O open banking cria um ambiente com mais concorrência. E o resultado disso para o consumidor, sejam pessoas ou empresas, são produtos e serviços financeiros melhores, mais customizados à real demanda de cada cliente e mais baratos.

O processo passa pelo compartilhamento de dados pessoais e financeiros, algo que preocupa muitos brasileiros. Como garantir que esse compartilhamento será seguro?
No quesito segurança, é tudo como é hoje. O processo é plenamente seguro, estamos falando da troca de informações entre instituições autorizadas, reguladas e supervisionadas pelo Banco Central do Brasil. As informações vão circular entre bancos, fintechs, instituições que estão dentro do arcabouço regulatório e de supervisão do Banco Central. Mais do que isso, são informações que já existem. Hoje, o banco no qual você tem conta já tem essas informações e protege isso, até porque a Lei de Sigilo Bancário diz que é crime violar a divulgação de informações sem consentimento do cliente. Hoje, as instituições financeiras transitam uma série de informações, sob o guarda-chuva da Lei de Sigilo Bancário e da privacidade das pessoas. Além disso, a informação só vai poder sair do banco A para o banco B se o consumidor der o consentimento, dizer qual informação quer que saia e por quanto tempo. E ele tem o total direito de interromper o fluxo dessa informação a qualquer momento. A segurança não muda. São duas instituições se comunicando via API, não envolve terceiros, e a instituição financeira tem o dever legal de preservar a integridade, a qualidade e a segurança desse sigilo.


Se é um dever legal, qualquer erro ou vazamento será passível de punição?
Com certeza está no escopo do Banco Central regular e supervisionar. E está no escopo da Lei de Sigilo Bancário. Nada muda em relação ao que existe hoje no modelo de segurança do sistema financeiro, que é super seguro.

O BC já vem trabalhando nesse projeto há alguns anos. O que já foi desenvolvido para que o open banking entre em vigor agora?
No ano passado, o Banco Central finalizou a regulação do open banking. E essa regulação, publicada em abril do ano passado, determinou que o open banking vai entrar em fases. Agora, o que temos é a entrada da primeira fase, que ainda não envolve as informações dos clientes. Essa primeira fase envolve apenas a disponibilização de informações das instituições financeiras. Informações sobre produtos e serviços financeiros terão que ser disponibilizadas pelas instituições para a sociedade como um todo, principalmente para os integrantes do open banking, de uma forma padronizada, detalhada e digitalizada via APIs. E nós temos uma governança específica que está desenvolvendo os APIs, sob monitoramento do Banco Central. Nessa governança, estão os grandes bancos, os bancos pequenos e médios, as cooperativas de crédito, as empresas de pagamento, as fintechs, todos os players relevantes. Todo mundo está participando e, no final, o BC faz a regulamentação.

Não é como no Pix, então, que o BC desenvolveu o sistema?
O mercado que desenvolve os APIs. Diferentemente do Pix, cujas transações passam pelo sistema de pagamentos, as informações vão sair de um banco direto para o outro banco, não transitam pelo BC. O BC não tem acesso às informações de transações financeiras dos clientes. O BC trabalha no sentido de regular, supervisionar e garantir a integridade para que tudo flua da melhor forma possível.

O que se espera dessa primeira fase?
Essa fase tem vários benefícios que vão começar a chegar nos próximos meses. As instituições vão apresentar os produtos que oferecem e as taxas praticadas de forma detalhada e padronizada, de tal forma que múltiplos atores vão colher essas informações e, mais à frente, quando o consumidor permitir o compartilhamento de dados, vão poder falar para o cliente que ele está comprando um produto que, no banco B, custa menos. Também espera-se que desenvolvedores, fintechs e, até mesmo, o meio acadêmico comecem a olhar esses dados para criar novos produtos, novos serviços ou até mesmo novos modelos de negócio. O open banking é um processo. A gente está disponibilizando a infraestrutura e as ferramentas agora, mas vários benefícios vão começar a ser construídos a partir daí. Já conseguimos visualizar várias possibilidades, mas outras milhares também serão criadas.

Por que esta fase foi adiada? A ideia era que essa etapa começasse em novembro de 2020.
Houve um ajuste em decorrência da readequação que veio com a covid-19. A gente tinha um plano, mas a covid-19 impactou o trabalho de várias instituições e o próprio Banco Central teve que focar em várias ações. Mas eu não classifico como um adiamento, porque o projeto como um todo vai ser concluído em 2021. A gente só fez um realinhamento das fases.

A primeira fase envolve apenas os dados das instituições financeiras, mas o consumidor poderá ter acesso a esses dados, para comparar e escolher o melhor produto?
Nesse primeiro momento, o compartilhamento de dados ocorre na forma de APIs. São dados abertos, mas é preciso que um modelo de negócio venha colher essas informações para prepará-las para os consumidores. No desenvolvimento do produto, vão aparecer empresas fazendo isso, pois milhões de usuários têm interesse em entender o que está acontecendo e podem montar um modelo de negócio, como uma plataforma de oferta e comparação de serviços financeiros.

Então, a inserção do consumidor fica para a segunda fase?
Em julho, quando entra a segunda fase, é que o consumidor vai ter direito de compartilhar seus dados com outras instituições financeiras.

Como vai funcionar a segunda fase, já com a participação do consumidor?
Na prática, você vai identificar uma instituição financeira que te oferece um produto do seu interesse e essa instituição vai pedir acesso a suas informações para conhecer você melhor. Você vai precisar aceitar as condições pactuadas para que ela peça seus dados ao seu banco. Isso vai acontecer entre bancos, fintechs, mas você tem que dar a autorização e a jornada tem que ser fácil dentro da sua instituição financeira. A decisão é do cliente. O consumidor precisa ser consultado e dar o consentimento para o compartilhamento de dados. Ele que estará no comando do processo. E, uma vez que tomou a decisão de compartilhar sua informação com uma segunda instituição, o consumidor precisa ter uma jornada eficiente. Então, a regulação pensou em mecanismos para termos uma jornada rápida e digital.

O processo precisa do aval do consumidor, mas muitos brasileiros têm medo de compartilhar seus dados. Como será feito o convencimento da população, para que o negócio avance?
O open banking é um processo que está iniciando agora, mas vai continuar em desenvolvimento. No andamento do processo, novos produtos e modelos de negócio vão surgir. Se isso facilitar a sua vida, por que você não vai topar? Virão novas funcionalidades e instituições. Você vai ver se é bom, vai ver o que mais te agrada e o que te traz mais segurança. O importante é que tem segurança e, por trás de todos os players do open banking, está o Banco Central. Todos os players passam pelo processo de autorização, estão sujeitos à regulação e à supervisão do Banco Central. E a supervisão de qualquer falha que ocorra, em qualquer processo, está ali para penalizar e fazer cumprir a ordem, que é severa, vai em cima das instituições e dos dirigentes, vai no CPNJ e no CPF. Ou seja, a segurança é a mesma de hoje. Você não coloca o dinheiro e suas informações no banco e ele preserva isso? No open banking é igual, pois os players estão sujeitos às mesmas regras e à mesma regulação.

Muitas novidades são esperadas a partir do open banking...
O open banking é um dos instrumentos de inovação do sistema financeiro. É a plataforma que vai ajudar o sistema financeiro a se desenvolver nos próximos anos. Tem uma frase interessante que diz que o open banking está para a evolução do sistema financeiro como a internet está para a atividade econômica e social do cidadão. A internet permitiu a criação de vários modelos de negócio e faz parte da vida hoje. O open banking também vai trazer uma série de funcionalidades para o mercado financeiro. É um importante instrumento de inovação e ganho de eficiência, que, junto com o Pix, faz parte da agenda de inovação que tem sido tocada com muito gás pelo presidente Roberto Campos Neto.

Além de permitir a criação de novos serviços financeiros, o open banking vai reduzir o custo desses serviços?
O open banking traz mais concorrência, o que traz mais qualidade e melhores preços. A gente vê isso em vários mercados, não tenho dúvida que isso vai ocorrer com o open banking também.

Assim como o Pix, é um processo que deve aumentar a concorrência no sistema financeiro?
Todos os segmentos econômicos estão passando por um processo de aprofundamento de digitalização e troca de informações. A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) reforçou que a informação pertence ao cliente e que, uma vez autorizada, precisa ser compartilhada, e muitas inovações partem dessa questão da informação. Então, foi um processo de amadurecimento dessas ideias, de convencimento e imposição também. O Banco Central, como regulador do sistema financeiro e tendo como missão promover a eficiência do sistema financeiro, vendo todo esse movimento, colocou isso na agenda e conduziu esse processo. E esse processo abre para todo mundo, é democrático. A concorrência favorece a todos e quem ganha é o consumidor final, com produtos e serviços melhores, a custos menores.

O senhor falou em imposição. Houve resistência dos grandes bancos?
Esta é uma agenda do Banco Central. Ele vai tocar essa agenda. Faz parte da regra de quem participa do sistema financeiro, de quem é instituição autorizada, regulada e supervisionada pelo BC, obedecer às regras que o BC determina com foco na estabilidade financeira e na eficiência dos mercados financeiros. Naturalmente, a gente sempre escuta a todos, pondera todos os aspectos e, dentro da nossa missão, conduz aquilo que acredita que vai atingir nossos objetivos. O Pix e o open banking são dois projetos prioritários e complementares, ao passo em que muitas dessas informações, em algum momento, vão caminhar para transações de pagamento via Pix.

A adesão ao Pix foi obrigatória para os grandes bancos. O open banking também é obrigatório?
No primeiro momento, os bancos que estão no S1 e no S2, os grandes bancos e os bancos grandes que não são os maiores, são obrigados a participar do open banking. Aos demais bancos, às fintechs e às instituições autorizadas pelo BC, é facultada a participação. Mas, uma vez que entra no ecossistema do open banking requerendo e recebendo dados, eles são obrigados a ceder também os dados. É o princípio da reciprocidade. Se entrarem, têm que entrar nas mesmas regras. E vão ter interesse de entrar. As fintechs, por exemplo, já nascem com essa cultura de competição, em que o cliente é o centro das decisões. E o dado é uma ferramenta fundamental nesse sentido.


Falamos da primeira e segunda fase, mas são quatro fases no calendário do open banking.O que mais virá?
A terceira fase é a fase de inicialização de pagamento. É a hora que você autoriza que o processo de pagamento se inicie por um terceiro, que também vai ser uma instituição autorizada pelo BC. É a hora em que o open banking conversa bastante com o Pix e que temos a oferta de crédito de forma mais sistematizada. Já a quarta fase agrega outros produtos e serviços que estão no balcão das instituições financeiras, como seguros e previdência.

Para o mercado, o open banking brasileiro é mais avançado que o do Reino Unido, que é referência mundial no assunto. Avançamos em que sentido?
A gente vem acompanhando o desenvolvimento do open banking mundo afora, tanto em países que são referência, como a Inglaterra, como em países que também estão em fase de desenvolvimento. E o modelo que a gente está fazendo é a segunda fase do open banking da Inglaterra, pois eles estão começando a discutir a implementação em outros produtos. Estamos fazendo algo mais abrangente, com alguns produtos bancários e informações a mais. Também demos um link maior entre o open banking e o pagamento instantâneo. E vários pequenos problemas que outros países tiveram, como Austrália e Hong Kong, já são endereçados na nossa regulação, como a questão da jornada do cliente, que tem que ser fluida. Então, nós inovamos em cima do que eles já desenvolveram.

Muitos agentes do mercado dizem, contudo, que é um desafio fazer tudo isso neste ano. A primeira fase já foi, inclusive, adiada. Podemos ter novos ajustes no cronograma?

O cronograma está fechado, não teremos nenhuma revisão. As outras fases estão em andamento. Concluindo essa agora, tudo já está planejado para julho. O processo é gradual, mas, até o fim do ano, implementamos todas as fases. E o beneficiário central disso é o consumidor.

“No quesito segurança, é tudo como é hoje. O processo é plenamente seguro, estamos falando da troca de informações entre instituições autorizadas, reguladas e supervisionadas pelo Banco Central do Brasil. As informações vão circular entre bancos, fintechs, instituições que estão dentro do arcabouço regulatório e de supervisão do Banco Central. Mais do que isso, são informações que já existem”

“A informação só vai poder sair do banco A para o banco B se o consumidor der o consentimento, dizer qual informação quer que saia e por quanto tempo. E ele tem o total direito de interromper o fluxo dessa informação a qualquer momento. A segurança não muda. São duas instituições se comunicando via API, não envolve terceiros”

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