CONJUNTURA

Desconfiança elevacusto da dívida pública

Tesouro não consegue vender títulos vinculados à Taxa Selic e é obrigado a pagar taxas cada vez mais altas em papéis prefixados para cobrir os gastos. Para analistas, quadro reflete aumento da preocupação com a deterioração das contas do governo

O desajuste das contas públicas e o crescimento da dívida vem impondo ao governo um custo financeiro cada vez maior. O Tesouro Nacional não tem conseguido vender nem metade dos lotes das LFTs, títulos com rentabilidade vinculada à Taxa Selic, oferecidos nos leilões que realiza regularmente. Ontem a procura foi novamente pequena, com os credores cobrando deságio no papel. Enquanto isso, os títulos prefixados (LTN e NTN-F) têm demanda garantida — mas com juros cada vez mais altos. Os papéis com vencimentos mais longos, por exemplo, foram negociados com taxa de pouco mais de 8%, ou seja, quatro vezes a Selic, de 2% ano.

Esse quadro reflete, segundo analistas, a perda de rentabilidade dos títulos indexados à Selic em um cenário de inflação rodando acima de 3%, mas, também, está relacionado ao aumento das preocupações com a deterioração das contas fiscais e ao risco de continuidade da pandemia da covid-19 ao longo de 2021.

Diante da piora das expectativas, o Tesouro vem encurtando os prazos da dívida e pagando juros cada vez maiores nos papéis prefixados. Analistas lembram que a Comissão Mista de Orçamento (CMO) nem sequer foi instaurada no Congresso devido a disputas políticas. Além disso, a desconfianças a respeito do cumprimento do teto de gastos em 2021 é crescente, enquanto o governo não define o futuro do auxílio emergencial.

No leilão de LFTs de ontem, o Tesouro conseguiu vender 231,5 mil unidades do lote de até 500 mil com vencimento em 2022. O órgão ofertou mesmo montante para outro lote vencendo em 2027 e colocou123,5 mil unidades. Os 355 mil papéis vendidos representam 35,5% da oferta total de 1 milhão. Resultado semelhante ocorreu na semana passada.

Descalabro
Sem conseguir colocar as LFT, o Tesouro continua ofertando volume maior de papéis prefixados, mas pagando juros cada vez maiores. O órgão colocou à venda 12 milhões de LTNs, e arrecadou R$ 11 bilhões na operação principal. Foram 5 milhões com vencimento em 2021, 3 milhões, para 2022, e 4 milhões, para 2024. Vendeu tudo, inclusive, os lotes complementares, de 1 milhão, 600 mil e 800 mil, respectivamente. No entanto, as taxas negociadas para os papéis com vencimento em 2024, de 6,41%, ficaram acima dos 6,3% contratados na semana passada.

Os títulos prefixados com juros semestrais (NTN-F), com prazos mais longos, também tiveram boa aceitação. O Tesouro vendeu os dois lotes de 1,5 milhão com vencimento em 2027 e em 2031, transacionando R$ 3,4 bilhões na operação principal. Mas, o custo para o Tesouro subiu.

Os papéis com vencimento em 2027, pagaram 7,41% ao ano, acima dos juros de 7,19%, cobrados na semana passada. Os títulos para 2031, por sua vez, ficaram 8,08% bem mais salgados que os 7,76% do leilão anterior.

O aumento dos juros preocupa os analistas. “Essas taxas indicam que o mercado está cada vez mais receoso com um possível descalabro fiscal. O leilão não chegou a ser um fracasso, mas a dívida está ficando bem cara e com prazo mais curto. Vai ser um grande desafio para o governo administrar”, destacou Josué Pellegrini, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI).

“Os leilões têm tido um comportamento pouco regular, mas mostram que o mercado está cada vez mais desconfiado com a deterioração fiscal, que vinha sendo ignorada durante a pandemia”, avaliou Eduardo Velho, economista-chefe da JF Trust.

Parte da alta dos juros, segundo Velho, está relacionada com o relatório da agência de classificação de risco Fitch Rating, divulgado nesta semana, que reforçou a preocupação com a questão fiscal e reafirmou a perspectiva negativa para o país.

Os títulos públicos com juros em alta atraíram investidores estrangeiros para a renda fixa, e isso ajudou na queda de ontem do dólar. A divisa vem oscilando, nesta semana, após a sinalização do Banco Central de que vai atuar no mercado para diminuir as pressões no câmbio.

Analistas lembram que encurtamento da dívida pelo Tesouro acende um sinal de alerta para 2021, pois, até setembro, o órgão tinha na carteira de R$ 1,2 trilhão de títulos vencendo em 12 meses. “O governo continua sofrendo pressões e, como não há perspectivas otimistas no mercado para o Orçamento, o Tesouro vai continuar pagando caro por isso”, destacou Velho.

Nova escalada

Taxa paga pelo Tesouro nos últimos leilões de prefixados (% ao ano)

Título12/1119/11

LTN 20213,042,12
LTN 20224,824,83
LTN 20246,306,39
NTN-F 20277,197,41
NTN-F 20317,768,08

Fonte: Tesouro Nacional

 

Guedes vê 2ª onda

O ministro da Economia, Paulo Guedes, admitiu que algumas regiões brasileiras parecem caminhar para uma segunda onda da pandemia do novo coronavírus. E garantiu que, se for confirmada, ela será enfrentada pelo governo, apesar de ressaltar que este não é o plano de trabalho atual. Na semana passada, Guedes disse que uma segunda onda de covid-19 poderia justificar a prorrogação do auxílio emergencial, situação que pode pressionar ainda mais as contas públicas, que terminarão este ano com um rombo na casa dos R$ 800 bilhões.

“Algumas regiões parecem estar acusando isso (um recrudescimento do contágio). Mas não é um fenômeno geral”, disse o ministro, durante o Congresso Brasileiro de Previdência Privada. “Enfrentaremos como enfrentamos antes. Sabemos enfrentar uma crise”, assegurou.

Guedes garantiu que não haverá populismo e que o teto de gastos será respeitado pelo governo. “Se a doença vier, já sabemos como temos que agir”, emendou. “Não é nosso plano. Nosso plano é seguir com as reformas. Agora, sabemos reagir a eventuais choques”, afirmou.

Neste ano, o auxílio emergencial vai custar mais de R$ 321 bilhões ao governo, e a equipe econômica vem defendendo a retomada do ajuste fiscal no próximo ano — tanto que o governo ainda não conseguiu encaixar o plano de criar um novo programa social no Orçamento de 2021, o Renda Brasil.

Paulo Guedes admitiu que o cronograma de reformas econômicas e privatizações está atrasado. Porém, continua acreditando que essa agenda vai ajudar o Brasil a retomar uma trajetória de crescimento sustentável no próximo ano.

Reservas
E, em maio à crescente desconfiança dos investidores em relação ao quadro fiscal brasileiro, o ministro afirmou, em outro evento, que fará “o que for necessário” para reduzir a dívida pública e citou, entre o cardápio de medidas, a possibilidade de “até vender um pouco de reservas”.

A dívida bruta do governo deve fechar o ano em 96% do Produto Interno Bruto (PIB), de acordo com projeções do Tesouro Nacional. Mantido o atual ritmo, a previsão é que a dívida ultrapasse os 100% do PIB em 2025.

Ao mesmo tempo, o país tem US$ 355,5 bilhões em reservas internacionais. “Nossa lógica é muito simples. A dívida tem de cair. E a maneira de fazer isso é vender ativos, privatizar, e até vender um pouco de reservas”, disse Guedes. Segundo ele, um volume alto de reservas era necessário quando o real estava sobrevalorizado ante o dólar e a taxa de juros era mais alta. Essa composição, frisou Guedes, mudou para um câmbio mais depreciado e taxa de juros menor.

União cobre perdas dos estados na crise

A situação fiscal dos estados apresentou melhora em 2020, em função do aumento dos repasses da União, que mais do que compensaram as perdas de receita tributária da maioria dos entes federativos durante a crise. Essa é uma das conclusões do estudo especial Análise da situação fiscal dos estados, divulgado ontem pelo Instituto Fiscal Independente (IFI).

Conforme o levantamento, o Amapá, que atravessa uma crise energética há mais de duas semanas, foi o estado que mais registrou ganho de receita com esses repasses no acumulado em 12 meses até setembro: 27,7% acima da receita tributária. Roraima, em segundo lugar, teve ganho de 26,1%, seguido por Acre (17,8%) e Tocantins (10,9%). Por outro lado, Ceará, Santa Catarina e São Paulo tiveram perdas, respectivamente, de 0,1%, de 0,6% e de 1,7%. O ganho do Distrito Federal sobre a receita tributária com os repasses foi de 2,9%.

O estudo mostra ainda que, por conta dessa ajuda no meio da pandemia, os estados tiveram superavit primário de abril a setembro de 2020, de acordo com o Banco Central. “No acumulado desses meses, os governos estaduais tiveram superavit primário de R$ 24,1 bilhões, bem acima dos R$ 2,1 bilhões em igual período de 2019”, destacou o documento.

Receitas
Conforme os cálculos da IFI, o auxílio superou as perdas de receita em 24 estados, em um total de R$ 12 bilhões, no período de 12 meses até setembro. O auxílio financeiro começou no início de junho e, após quatro prestações de R$ 9,25 bilhões cada, os desembolsos previstos totais de R$ 37 bilhões foram concluídos no início de setembro. Além disso, o adiamento do pagamento de dívidas e de encargos para a União também ajudou no resultado, de acordo com Josué Pellegrini, diretor da IFI e autor do estudo.

Na avaliação do especialista, a melhora na situação fiscal dos estados é “pontual e circunstancial”, pois esconde o aumento do desequilíbrio fiscal, especialmente, devido ao forte aumento dos gastos com pessoal nos últimos anos. O levantamento mostra que, dos 27 entes federativos, 13 gastam com pessoal mais do que a média nacional de 57,9% da receita corrente líquida, com Rio Grande do Norte (72,8%) e Minas Gerais (69,4%) na liderança.

“Os repasses da União e a suspensão do pagamento de dívidas ajudaram, mas o problema fiscal não está resolvido. E o mais preocupante é que há um movimento no Congresso para que eles continuem no ano que vem, com o projeto de lei que trata de novo socorro para os estados, o PLP 101/2020. Isso vai trazer mais problemas para o endividamento do governo federal”, alertou Pellegrini.

Recuperação fiscal
O texto do PLP 101/2020 tem origem da tramitação da proposta conhecida como Plano Mansueto, mas a versão atual é bem mais ampla, notadamente em relação a alterações no Regime de Recuperação Fiscal (RRF), uma espécie de plano de socorro aos estados. Pelas mudanças, o prazo do regime passa de dois para três anos, prorrogável por mais três, para 10 anos, e os indicadores fiscais exigidos como condição para o ingresso são flexibilizados.

“Até 11 estados estão aptos a solicitar a adesão, considerando-se os indicadores de 2019. São três estados com nota final D e mais oito com nota final C. A adesão do Rio de Janeiro, além de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Goiás e Rio Grande do Norte, que atualmente já pleiteiam o ingresso no regime, levará à incorporação imediata ao saldo devedor da dívida junto à União”, destacou Pellegrini.

O diretor da IFI evitou estimar o impacto fiscal desse projeto, mas lembrou que, devido ao RRF e de liminares judiciais, os pagamentos suspensos acumulados junto à União relativos aos referidos estados chegaram a R$ 98,8 bilhões em agosto deste ano. Segundo Pellegrini, a exposição total da União junto aos estados era de R$ 823,6 bilhões até o fim daquele mês. (RH)