O impasse sobre a fonte de financiamento para um programa de distribuição de recursos que vá além de tirar famílias do nível da miséria, a fim de diminuir desigualdades, suscita o debate para traçar e sugerir alternativas na construção de uma política de renda universal ou mínima. Na última semana, a Frente Parlamentar que discute a Renda Básica no Brasil, formada por mais de 200 deputados federais e senadores, debruçou-se sobre a discussão que — a dois meses para o fim do auxílio emergencial —, ganha ainda mais visibilidade na pauta dos debates econômicos, juntando as esferas política e social.
Diante de problemas conjunturais de curto prazo e de desafios estruturais que evidenciam a desigualdade social, o grande desafio é desenhar uma política de proteção social capaz de abarcar uma maior parcela da sociedade. Nessa sugestão de engrenagem mais sofisticada, é preciso pensar na garantia de direitos trabalhistas para além dos que estão inseridos no mercado de trabalho formal, como problematiza a conselheira da frente, economista e professora da Universidade de São Paulo (USP), Laura Carvalho.
“As transformações globais no mercado de trabalho vêm apontando a necessidade de se rever a maneira com que pensamos a proteção social. É importante entender que a transferência de renda, de maneira geral, precisa cumprir não apenas o objetivo primordial e prioritário de combate à pobreza, mas, também, garantir poder de negociação e valorização de trabalhadores que exercem atividades produtivas, mas que não são abarcados por garantias trabalhistas”, explica a economista.
Nesse sentido, o auxílio emergencial no contexto da covid-19 foi primordial para a redução das desigualdades em meio à recessão econômica e mostra como uma política mais abrangente de distribuição de renda é essencial para equilibrar o mercado de consumo. Como exemplifica Carvalho, a renda recebida pelo trabalho diminui em 5% durante a pandemia, mas, ao somar o auxílio emergencial a renda per capita, há uma neutralização desse percentual, “inclusive reduzindo a desigualdade geral”, como indicam os últimos números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).
Por isso, o fim do auxílio representa um risco grande. “Temos um desafio de curto prazo urgente, em que não se pode retirar um programa desse de uma hora para outra, fazendo a desigualdade vir à tona de uma forma brusca, o que interrompe e limita qualquer possibilidade de recuperação. Além disso, temos os desafios de longo prazo, já que o Bolsa Família é insuficiente para lidar com as demandas que estão por vir”, reforça a conselheira. Para ela, diferentemente das propostas atuais de governo, que “tiram do extrato médio a fonte de financiamento”, há a necessidade de se propor uma reforma tributária com características progressivas, fazendo com que as maiores tributações saiam das maiores rendas, de forma com que a arrecadação seja convertida em repasses à base mais vulnerável dessa pirâmide.
“O programa pode ser muito maior se a gente seguir uma linha de tributação progressiva, estratégia que todos no mundo que estão trabalhando com programas de transferência de renda adotam. Para isso, é necessário discutir a Lei do Teto de Gastos para permitir tributar do topo da renda para a base”, sugere Carvalho.
Três linhas
No Brasil, pouco antes da pandemia, 40% dos trabalhadores atuavam na informalidade, evidenciando que o esperado movimento gradual para a formalização, de forma com que os direitos trabalhistas seriam a forma de universalizar a proteção, nunca se concretizou no Brasil e nos países em desenvolvimento. É o que ressalta o economista da Fundação Getulio Vargas (FGV) Fernando Veloso. “Esse é um fator que nos leva a pensar que precisamos elaborar outra forma de proteção social e que seja algo com maior portabilidade, em que o cidadão que entra e sai do trabalho formal tenha os seus direitos garantidos”.
Para promover a justiça social, Veloso defende uma proposta construída em três linhas. A primeira seria a introdução de um seguro informal, financiado pelo governo, na faixa de 15% sobre a renda declarada, a fim de atingir a até 46% dos trabalhadores mais pobres do Brasil. “Esse colchão de proteção por meio do seguro possibilitaria o saque em casos de perda de renda, falecimento do provedor da família ou uma calamidade como a pandemia”.
Outra estratégia levantada pelo especialista se baseia na criação de um esquema de transferência de renda, que unifique os quatro benefícios existentes em torno de um único benefício de superação da pobreza. O terceiro pilar seria a priorização de incentivos como bolsas e poupanças de estudos como forma de estimular a educação. É por meio do mecanismo do Cadastro Único que Veloso acredita ser possível identificar os mais vulneráveis para beneficiar com as estratégias.
"O programa pode ser muito maior se a gente seguir uma linha de tributação progressiva, estratégia que todos no mundo que estão trabalhando com programas de transferência de renda adotam”
Laura Carvalho, economista
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Benefício universal infantil
O consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e economista Pedro Nery defende a criação de um benefício universal infantil para nortear a transferência de renda. Segundo ele, as famílias mais ricas e que conseguem financiar os estudos dos filhos de forma particular já recebem uma espécie de benefício por meio das deduções de impostos. No entanto, ainda é necessário atingir o público que está acima da linha da pobreza e, por isso, não recebe benefícios. "Estaríamos prestigiando algo em torno de 17 milhões de crianças que, no arranjo atual, não têm direito a nenhum tipo de benefício. Ou seja, são famílias que não são nem tão ricas a ponto de declarar Imposto de Renda, nem tão pobres a ponto de estar incluídas no Bolsa Família".
Mesmo sendo referência em relação a auxílios, o Brasil peca no tocante à proteção da primeira infância, como sugere o professor. “Temos um gasto previdenciário, a legislação previdenciária discrepante em relação a outros países emergentes. Temos regras mais benevolentes do que outros países, inclusive benefícios que não existem em lugar nenhum, com o auxílio-reclusão. Mas, esse não é o caso para a proteção à infância, muito embora tenhamos sido pioneiro no Bolsa Família ao condicionar a transferência de renda”.
Nery defende que o investimento na infância faz cidadãos mais produtivos para o futuro, com melhores oportunidades, salários e capacidade de contribuição e geração de renda. “Há um desafio enorme de produtividade nas próximas décadas, por conta do envelhecimento da população. Precisamos que a produtividade da força de trabalho aumente. E existe uma boa evidência de retorno altíssimo e com custo efetivo bastante razoável ao se gastar com foco na infância, não só com transferência de renda”.
Compromisso
Seja com foco na educação, na saúde ou na cultura, por exemplo, a elaboração de um programa de distribuição de renda mais universal funciona como um pivô de políticas sociais, aumentando a probabilidade de produzir uma política intersetorial. É o que defende o economista Ricardo Henrique, conselheiro da Frente e superintendente executivo do Instituto Unibanco. “Hoje, temos a oportunidade de colocar no debate uma ideia de que o compromisso da sociedade, dos governos e do espaço público de produção de bens públicos implica a elevação do status da política social à produção de uma relação de equivalência à política econômica”.
Na avaliação do conselheiro, uma renda básica, universal ou mesmo parcial, para além de mitigar a pobreza, possui fundamentos importantes para aumentar a probabilidade de emancipação. “Ou seja, aumentar as liberdades substantivas das pessoas à medida em que você produz, com uma renda, um acolhimento estrutural que viabilize o compromisso público, reconhecendo as situações de vulnerabilidade estrutural, não permitindo que famílias caiam abaixo desse nível (de pobreza) e conseguindo manter, em alguma medida, suas liberdades de escolhas”.