A pandemia de covid-19 teve efeito muito severo na atividade econômica global e na arrecadação nas três esferas de governo. Mas o quadro parece mais preocupante nos municípios, que devem apresentar retração na receita com tributos durante um período mais prolongado do que os estados, porque a receita está mais atrelada aos serviços, que foram mais afetados pelo isolamento social.
Conforme o anuário Multi Cidades, divulgado pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP) nesta quinta-feira (15/10), entre os principais tributos municipais, foi registrada queda de 16,8% na arrecadação do Imposto Sobre Serviços (ISS) e recuo de 15,8% no Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), no segundo trimestre de 2020 em relação ao mesmo período de 2019. No semestre, as baixas foram de 5,2% e de 2,8%, respectivamente.
O Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) sofreu uma baixa ainda mais forte, de 24,4% no segundo trimestre. Enquanto isso, os repasses do Fundo de Arrecadação dos Municípios (FPM) no primeiro semestre de 2020 tiveram queda de 9,7%, na comparação com o mesmo período de 2019. O FPM, proveniente da União, foi reduzido em 19,1%, no segundo trimestre de 2020, conforme dados do documento de 204 páginas.
As transferências estaduais do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) encolheram 15,1% e as do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) caíram 21,8% entre abril e junho. “A performance da receita também não teve evolução homogênea do ponto de vista do porte populacional. Houve mais dinamismo nos grandes centros urbanos, com alta de 7,3% nos municípios com mais de 500 mil habitantes, e elevação menos acentuada (de apenas 2,5%) naqueles com menos de 20 mil moradores”, destacou o estudo.
“De um modo geral, as retrações de receita de abril a junho justificam-se pela redução do nível da atividade econômica. Aliam-se a esse fator as postergações do parcelamento do IPTU e a suspensão da cobrança da dívida ativa adotadas por algumas cidades”, acrescentou o documento.
Baixa eficiência
O documento constatou também que os recursos da União chegaram tardiamente aos municípios, uma vez que, em setembro, muitas das localidades encontravam-se já na fase de declínio de novos casos e de óbitos quando houve repasses de recursos. “A distribuição teve baixíssima eficiência alocativa, já que atribuiu pesos que não refletiam a estrutura de atendimento médico-hospitalar disponível nos municípios”, informou o relatório.
Dessa forma, enquanto um município com até 20 mil habitantes recebeu, em média, R$ 1,1 milhão por leito (ou R$ 88,01 per capita), os mesmos indicadores para uma cidade com mais de 500 mil moradores foram de R$ 64,8 mil e R$ 35,46. Logo, considerando o número de leitos, uma pequena cidade recebeu 17,1 vezes mais do que uma grande.
Gastos crescentes
Mas os gastos com municípios estão crescendo com a redução do isolamento social. No segundo bimestre de 2020, o aumento das despesas dos municípios foi puxado pela ampliação dos recursos direcionados à saúde (13,9%) e à assistência social (10,6%), de acordo com o estudo. No terceiro bimestre, a taxa de crescimento na saúde foi ainda mais intensa, com variação de 15,8%. Na assistência social, a elevação ficou em 6%.
“Os municípios concluíram o primeiro semestre aplicando 11,5% a mais em saúde do que no ano anterior, o que equivaleu à injeção de recursos adicionais da ordem de R$ 8,45 bilhões. No caso da assistência social, foram R$ 567,8 milhões adicionais, com alta de 6,5%. Portanto, nessas duas áreas foram gastos R$ 9,02 bilhões suplementares no primeiro semestre de 2020, no confronto com o mesmo período do ano anterior”, informou o anuário.
Contramão
Enquanto os municípios veem a arrecadação encolher, provavelmente, por um período mais prolongado devido à pandemia, alguns estados apresentaram retomada na receita entre agosto e setembro.
Conforme estudo divulgado pela Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite), 13 dos 27 entes federativos registraram aumento na receita entre agosto e setembro, impulsionado pelo consumo promovido pelo auxílio emergencial aos mais vulneráveis. Roraima, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Amapá, Tocantins, Alagoas, Mato Grosso do Sul, Goiás, Pernambuco, Maranhão, Distrito Federal e Amazonas tiveram crescimento na arrecadação.
"A principal receita dos estados é o ICMS, que está relacionado ao consumo. Com o auxílio, os mais pobres tiveram aumento na renda e ela foi direcionada ao consumo, principalmente, de alimentos. Já os municípios têm como maior fonte de receita própria o ISS, cujo crescimento depende da retomada dos serviços, que foram mais afetados na pandemia e, portanto, devem demorar para se recuperarem", explicou a economista Juliana Damasceno, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) e uma das autoras do estudo da Febrafite.
A economista destacou que os dados combinam dados da receita com ICMS e da Pesquisa Mensal de Consumo (PMC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram desempenho parecido nesse processo de recuperação. Ela lembrou, no entanto, que, como há delay nas receitas de tributos, a redução do valor do auxílio emergencial de R$ 600 para R$ 300, a partir de setembro, deverá ser refletido a partir dos dados de outubro e, portanto, o crescimento do mês passado não deverá se refletir no restante do ano. Além disso, em 2021, quando o benefício for interrompido, há muitas incertezas sobre a continuidade dessa retomada.
Rodrigo Spada, presidente da Febrafite, também reconheceu esse problema e defendeu a necessidade de manter "por mais algum tempo" um mecanismo sustentável de ajuda aos menos favorecidos. Ele ressaltou que a maior parte do auxílio emergencial foi aplicado em consumo, "já que no extrato da população em vulnerabilidade social não há espaço no orçamento para poupança".
"Contudo, acreditamos que, embora o pior momento tenha ficado para trás, há dois pontos que merecem destaque: o primeiro diz respeito à necessidade de que o país discuta uma nova modelagem de nosso sistema tributário, por meio de uma reforma que atualize as regras para aplicar desburocratização, permitindo a atração de investimentos produtivos que gerem emprego e renda", acrescentou.