Diante da falta de recursos para financiar o Renda Cidadã — programa de assistência social que o presidente Jair Bolsonaro pretende lançar para substituir o Bolsa Família — o governo busca saídas desencontradas. Uma delas passava pela prorrogação do auxílio emergencial e do decreto do estado de calamidade para 2021, e, consequentemente, do Orçamento de Guerra, que abriu uma série de exceções, como a flexibilização da meta fiscal e da regra de ouro, emenda constitucional que proíbe que o governo emita dívidas para cobrir despesas correntes. Desse modo, o governo poderia emitir créditos suplementares para gastar.
Apesar de integrantes do governo cogitarem essa possibilidade, o ministro da Economia, Paulo Guedes, negou a prorrogação — tanto do auxílio quanto do estado de calamidade. “Tem um plano emergencial e o decreto de calamidade, que vão até o fim do ano. E, no fim de dezembro, acabou tudo isso”, afirmou Guedes, ontem, em um café da manhã com jornalistas. Ele também disse que “o ministro da Economia está descredenciando qualquer informação de que vai prorrogar o auxílio”.
A falta de recursos para financiar o programa provocou novo adiamento da apresentação da proposta, prometida para ontem pelo senador Marcio Bittar (MDB-AC). Agora, não há expectativa de que isso aconteça antes das eleições municipais, apesar de o senador ter afirmado que o texto seria entregue “na semana que vem, se Deus quiser".
A ampliação do prazo do estado de calamidade, via nova autorização do Congresso, daria mais tempo para o governo desenhar melhor o programa que será a plataforma de Bolsonaro para buscar a reeleição em 2022. Contudo, analistas lembram que há o risco de a medida, além de romper o teto de gastos, abrir a porteira para o aumento de despesas via créditos suplementares. Esse mecanismo tem financiado o rombo fiscal histórico de 2020, que está encostando em R$ 900 bilhões, 12% do Produto Interno Bruto (PIB). Para o ano que vem, Guedes promete reduzir o deficit para 2% do PIB, algo cada vez mais improvável.
“É preciso tomar muito cuidado. Se não houver transparência nas transferências de recursos do Orçamento, vamos voltar ao quadro dos escândalos das verbas orçamentárias dos anões de 1994”, alertou a procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo Élida Graziane Pinto. Ela lembrou que os governos da Europa, diante da gravidade da pandemia e de suas consequências na economia global, estão fazendo planos bianuais para justificar o aumento de gastos, mas “no combate à pandemia”. “No caso do Brasil, é preciso muita transparência, porque não se pode dar um cheque em branco para o governo aproveitar a lei do Orçamento de Guerra para emitir créditos extraordinários sem critérios claros e fiscalização”, defendeu.
Quando solicitou ao Congresso a aprovação do estado de calamidade, o governo achava que a pandemia era uma “gripezinha” e, agora, precisará admitir o erro de impor o fim do decreto de calamidade em 31 de dezembro. “Agora, o mercado financeiro, que financia o deficit das contas públicas, está sem saber qual é o sinal que o governo vai dar se isso ocorrer: se é realmente para enfrentar a pandemia ou para abrir espaço para as eleições de 2022”, afirmou o analista do Senado Leonardo Ribeiro.
Contingenciamento
Enquanto o governo adia o anúncio do Renda Cidadã, a certeza é de que as medidas de financiamento serão impopulares, prevendo cortes de gastos obrigatórios, como a revisão de programas assistenciais existentes. O motivo é que o Orçamento de 2021, do qual Bittar será o relator, não tem espaço para novas despesas sem o estouro do teto de gastos.
“Mesmo se o governo conseguir avançar com reformas e criar o Renda Cidadã com um valor intermediário, de R$ 300, não será fácil conter os gastos dentro do teto sem que, no ano que vem, o governo faça um contingenciamento de despesas logo no início do ano”, alertou o economista Fabio Klein, da Tendências Consultoria.
Pelas estimativas de Klein, considerando um valor intermediário de R$ 300 por mês para 17,5 milhões de famílias, o custo anual do Renda Cidadã pode chegar a R$ 63 bilhões. Em um cenário pessimista, essa despesa saltaria para R$ 88,2 bilhões.
O economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social), reconhece que a ampliação do Bolsa Família será positiva para a economia e a redução da desigualdade no país, contudo, o Orçamento federal não comporta um programa que custe mais do que R$ 70 bilhões por ano. “Qualquer valor acima disso não será sustentável fiscalmente”, alertou.